Social e culturalmente, a idéia
que se apresenta às mães sobre a chegada de um novo ser é de um
fato ideal, feliz e luminoso. È necessária certa audácia para
encarar o tema a partir de um “encontro com a própria sombra”. A
que você se refere exatamente?
É claro que a sociedade ou o
inconsciente coletivo tentem colocar a maternidade num leito de
rosas. Quanto mais uma mamãe “compre” esta visão unilateral,
mais impactante e mais brutal resultará para ela o encontro com os
lugares obscuros que aparecem depois do parto e no puerpério. Eu
encaro a maternidade como uma crise, como um rompimento que se produz
no parto e nessa quebra se colam partes da sombra, ou seja,
pedacinhos de alma ocultos ou desconhecidos até então, que se
manifestam através do bebê. Ele se converte em espelho cristalino
dos aspectos mais ocultos da mãe, de sua sombra. Por isso, o contato
profundo com um bebê é uma grande oportunidade que se deve
aproveitar ao máximo.
De que maneira a sombra da mãe se manifesta através do bebê?
Quando um bebê nasce se produz a
separação física, mas este corpo recém nascido não é só
matéria, mas também um corpo sutil, emocional, espiritual. Ainda
que a separação física efetivamente se produza, bebê e mãe
seguem fusionados no mundo emocional. O bebê se constitui no sistema
de representação da alma da mãe. Tiudo o que a mãe sente,
recorda, o que a preocupa, o que rechaça, o bebê o vive como sendo
próprio. Porque nestes sentido e momento são dois seres em um.
Então a mãe atravessa esse período desdobrada no campo emocional,
já que sua alma se manifesta tanto em seu próprio corpo como no
corpo do bebê. E o mais incrível é que o bebê sente como próprio
tudo o que sente a sua mãe, sobretudo o que ela não pode
reconhecer, o que não reside em sua consciência, o que foi relegado
à sombra. Então, se um bebê adoece ou chora desmedidamente, ou se
está alterado, além de fazermos perguntas no plano físico será
necessário atender o corpo espiritual da mãe, reconhecendo que a
enfermidade da criança manifesta uma parte da sombra da mãe.
E como a mãe pode canalizar
esta manifestação do bebê para seu próprio crescimento?
Se um bebê chora demasiadamente,
se não é possível acalmá-lo nem amamentando-o nem aninhando-o,
enfim, depois de cobrir as necessidades básicas, a pergunta seria:
Porque chora tanto a sua mamãe? Se o bebê não se conecta, parece
deprimido, quais são os pensamentos que inundam a mente de sua mãe?
Se um bebê rechaça o seio, quais são os motivos que pelos quais a
mãe rechaça o bebê? As respostas residem no interior de cada mãe,
ainda que não sejam evidentes. Para ali devemos dirigir nossa busca,
na medida que a mulher tenha uma genuína intenção de encontrar-se
consigo mesma.
Este estado de fusão emocional
dura dois anos, tempo em que a mãe experimenta estados alterados de
consciência por viver desdobrada em vários campos emocionais. Esta
é a loucura do puerpério.
Por
que dois anos? Comumente se fala do
puerpério como um período que dura cerca de 40 dias.
Se
considera puerpério aos primeiros quarenta dias depois do parto,
porque se toma como parâmetro a cicatrização da episiotomia, a
interdição sexual ou moral, para que o homem não queira exigir
genitalidade à mulher. Eu creio que é um fenômeno emocional.
Enquanto dura a fusão emocional, dura o puerpério. Por volta dos
dois anos a criança começa a separar-se emocionalmente de sua mãe.
Até então era bebê-mamãe, um ser totalmente fusionado, que fala
de si na terceira pessoa: “Matias quer água”. Aos dois anos
começa a dizer “Eu quero água”. Quando se constrói como um ser
separado, começa lentamente a separar-se emocionalmente.
Como nasce sua teoria?
Sinceramente, não sei quando nem
como nasceu minha “teoria”, já que não a vivo como “teoria”,
mas sim como uma prática constante. Basicamente através da
observação de centenas de mães se relacionando com seus bebês.
Foi muito revelador para mim, quando há cerca de 20 anos li o livro
“A Enfermidade como Caminho”, de Dethlefssen e Dahlke, um médico
e um astrólogo alemães, ambos junguianos. Comecei a investigar as
teoria de Jung em relação à manifestação da sombra, e ao sentir
que as crianças pequenas estavam tão involucradas dentro do campo
emocional das mães, e vive versa, me ocorreu observar se o que
manifestavam – e que eram muitas vezes incompreensíveis para as
mães – poderia ser a expressão de situações emocionais que elas
não poderiam reconhecer como próprias. É muito frequente que as
mães não falem de si mesmas nas consultas, mas sim do que está
acontecendo com seus filhos. E foi cada vez mais evidente para mim,
que este “jogo” era permanente. Por exemplo, quando eu coordenava
grupos de crianças e algum bebê estava muito inquieto, eu tentava
induzir à mãe a um olhar interno, íntimo, até que “tocava”
num ponto doloroso pessoal, de sua história primária. Mesmo que
considerasse que o assunto estava “superado”, quando conseguia
falar sobre o tema, o bebê automaticamente parava de chorar. E o
grupo era testemunho desta “magia”. Mas não era nada mágico,
era a mãe que se apropriava de uma parte de sua sombra, que o bebê
estava, de outro modo, obrigado a manifestá-la. Aos poucos fui
aprendendo a reconhecer mais rapidamente a linguagem dos bebês e
crianças pequenas “fusionadas” ao campo emocional da mãe. Na
realidade, o verdadeiro trabalho de busca quem o realiza é a mãe, o
meu papel é só o de apoiar a busca genuína, porque cada indivíduo
sabe profundamente o que lhe passa. Os bebês são seres sutis, por
isso manifestam com total espontaneidade. Neste sentido são
verdadeiros espelhos da alma.
Em seu livro você faz uma
distinção entre a dor como algo necessário e positivo para o
crescimento, e o sofrimento, desnecessário de destrutivo. Que
diferença há entre um e outro?
Quando falo da diferença entre
dor e sofrimento, me refiro ao parto em si mesmo. Hoje em dia quase
todas as mulheres parem anestesiadas, em partos “induzidos” pela
introdução de ocitonina sintética, para regular a duração e a
intensidade das contrações. Em geral a mulher não é respeitada,
não lhes permitem mover-se, caminhar, comer, ir ao banheiro; ela
está atada à cadeira de parto que é terrivelmente incomoda, lhe
acomete câimbras nas pernas, lhes rasgam, entram muitas pessoas,
médicos e paramédicos, enquanto a mulher está com os genitais
expostos, há pouca afetividade e nenhuma intimidade. O marido está
atuando, fazendo de conta que é um bom pai moderno. É tanto
sofrimento, que as mulheres, ao invés de pedirem contenção,
abraços, calor, amor, silêncio, música, água, algo doce para a
boca, suavidade... pedem aos gritos por anestesia. E recebem.
Se pudéssemos imaginar um parto
acompanhado verdadeiramente, com liberdade de movimento, na data
verdadeira (ainda que “se atrase”), em intimidade, com uma ou
duas pessoas do círculo mais íntimo, a dor seria então o veículo
para o recolhimento, para a introspecção, para sair do mundo das
formas e entrar no mundo sem limites, sem palavras, sem luzes... é
um momento de abertura de consciência. Assim a dor é suportável, é
necessária, porque nos permite “sair” do mundo racional, e só
fora do mundo racional se pode parir em liberdade. As mulheres que
parimos verdadeiramente em liberdade, é que podemos contar o que é
o paraíso.
Não há modelos nem receitas
sobre como ser mãe no Século XXI. Qual você crê que seja o maior
desafio para as mulheres de hoje?
É certo que nao há modelos. O que
podemos chamar tradicional, ou seja o que viveram nossas avós, se
refere à dona de casa que criou filhos e criou o marido. Muitas
delas foram escravas dos desejos dos demais. Hoje em dia, alguma
mulheres estamos num pólo aparentemente longínquo, trabalhamos todo
o dia, ganhamos dinheiro, as vezes somos bem sucedidas, criativas,
independentes. Quando aparece o primeiro filho, na minha opinião, se
temos construída toda a nossa identidade no que chamo energia Yang –
aspectos concretos do trabalho, dinheiro, relações sociais, etc -
isto que nos traz o bebê não tem nada a ver com o “normal”... e
tendemos a fugir para os espaços conhecidos: desesperadas para
voltar a trabalhar, a ser que éramos antes. Para mim isto também é
falta de liberdade interior.
É necessário revisar os acordos
do casal anteriores ao nascimento do filho, quando somos capazes de
apoiarmos-nos um ao outro e vive versa. Maternar é fundamentalmente
conectar-se profundamente com a energia Yin, que é lenta,
silenciosa, de tempos prolongados, redonda, quentinha, suave,
interna, obscura, pegajosa... Navegar entre as duas energias é para
mim um dos principais desafios para as mulheres modernas. Nem fugir
do desconhecido, nem alheiarmo-nos do mundo, infantilmente como
nossas avós. E saber que há outras pessoas ao redor para ocupar
certos espaços por um tempo: o homem será a sustentação para que
a mulher possas maternar. E se não há um homem maduro, haverá
outras redes, família, amigos, grupos de apoio. Não se pode
maternar sem sustentação. Não se pode maternar sem fusão
emocional. Não se pode maternar sem buscar o próprio destino.
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