Uma aula de vida e sabedoria com a
maior professora de Vedanta do Brasil
A leveza e a profundidade de Gloria Arieira são reveladas em cada momento que se passa ao seu lado. Descalça ou de sandálias, não se ouvem seus passos. Sua voz não é alta, mas tem força e clareza cristalina. E o melhor: quando fala, tudo parece forte e claro assim. Mas o que a fundadora do centro Vidya Mandir diz tem a ver com a sua prática? Ela explica: “O Vedanta é o estudo e o Yoga é o estilo de vida para atingir o autoconhecimento. Eles estão juntos”.
- Sabemos que as
palestras a que assistiu do Swami Chinmayananda no Rio de Janeiro em
1973 foram decisivas para você estudar Vedanta na Índia. Por quê?
- Eu tinha acabado de
fazer 20 anos e estava realmente buscando alguma coisa na vida que
fizesse sentido, e nada me respondia o porquê. Alguns anos antes,
nos Estados Unidos, um evento havia me marcado: conheci um mexicano,
que me contou entusiasmado que sua vida estava quase realizada porque
poderia viver seus três grandes desejos: morar nos EUA, conhecer o
Brasil e ir à Alemanha. E eu nasci no Brasil, estava nos EUA e de
passagem marcada para a Alemanha! E ainda muito longe de me sentir
realizada! Mais do que pensar no que leva à realização, eu queria
saber o que é a realização, o que significa sentir-se pleno. Nas
religiões se fala de um Deus, de um criador, mas de uma maneira tão
infantil. Faz sentido que exista uma causa para essa criação, mas
que causa é essa? Um dia, morando em Petrópolis, dei de cara com a
Bhagavadgita da Sociedade Teosófica, e tratava de coisas que eu
nunca tinha ouvido falar, como liberação, sábio, plenitude. Eram
palavras que estavam na minha mente e também ali naquele livro.
Pensei: “Bom, alguém está falando a minha linguagem, mas que
conhecimento é esse?”. Então, em setembro de 1973, por esses
acasos da vida, o Swami Chinmayananda, a caminho da Argentina para
encontrar duas pessoas, parou no Rio e fez duas palestras. E o que
ele falou era exatamente o que eu estava buscando, o significado da
vida, o preenchimento que é o entendimento da sua natureza
essencial, de que não existe nada lá fora que vai preencher você,
mas a descoberta de um eu livre de limitação, de que existe uma
causa no Universo, mas é diferente do que se fala sobre Deus. O
Universo não veio do Criador como algo de fora, mas é uma
manifestação Dele, assim como o sonho é uma manifestação do
indivíduo. O sonho faz parte de mim, eu sou o sonhador e o sonhado.
Isso é uma visão completamente diferente e única. Saí dessa
palestra sem entender tudo, mas sabendo que existe um conhecimento.
Ele realmente transformou a minha vida nesse dia.
Busca intensa
Sempre tive muitas
oportunidades. Aos 6 anos saí pela primeira vez do Brasil. Meu pai
era piloto, foi fazer um curso nos EUA, e lá fui eu. Depois, aos 17,
voltei para lá, fiquei dois anos, e então pude viajar pela Europa
por três meses. Viajei pelo Brasil todo, do Amazonas ao Sul. Conheci
muita gente, mas ninguém que estava satisfeito, pleno. Minha vida
estava fácil, mas eu tinha uma urgência de resolver a insatisfação
por não entender o porquê das coisas e não conseguir relaxar.
Nessa busca intensa, conheci de Hare Krishna a Zen Budismo, mas não
me identifiquei. O máximo que vi eram pessoas tranquilas em práticas
de meditação. Então, como muitos de nós, achei que seria um único
caminho. Conheci um rapaz que também estava buscando isso,
alimentação, Yoga... Resolvemos ir a um lugar afastado para viver
isso. Tentamos Cabo Frio, mas era agitado. Decidimos ir à Terra do
Fogo, na Argentina, e nos casamos. No caminho percebemos que o lugar
não faria a menor diferença e voltamos a Petrópolis, pois lá
tínhamos onde morar. Acordávamos às 5h da manhã para fazer
pranayamas e meditação no alto da montanha. Aquilo trouxe uma certa
paz, mas momentânea. Então decidimos ir até o Swami Chinmayananda.
Ele havia dito algo muito bonito na palestra, que um buscador é como
uma flor – precisa se abrir completamente –, mas se aberta à
força, não terá perfume nem beleza. Precisa amadurecer no seu
tempo, para que se abra com todo o seu potencial, com a ajuda de um
jardineiro, o mestre. No final da palestra, fui perguntar (eu já
falava inglês por ter morado nos EUA): “O senhor seria o meu
jardineiro?”. Ele respondeu: “Se a planta não morrer, sim”.
Com meu marido, fui ao encontro dele na Índia. Como o Swami dava
palestras pelo mundo, quem dava aulas para um grupo de 55 pessoas lá
no ashram era o Swami Dayananda, e ele realmente foi um mestre
perfeito para mim. Explica com muita lógica e clareza. Foi um prazer
passar quatro anos e meio lá estudando – enfim, a descoberta
daquele conhecimento que eu procurava. Fui com muita sede e todas as
respostas estavam ali, então foi um acalmar, um relaxar.
- Depois de quase 40 anos de estudo e prática em ensinar, existe alguma dúvida ou angústia em relação a essa busca?
- (Sorri) Não, não
existe. Existe um relaxamento e uma clareza em relação a isso
tudo.
- Qual seria o maior obstáculo para uma pessoa interessada no autoconhecimento e como superá-lo?
- O primeiro obstáculo é
não discernir o que você está realmente buscando. Fora isso, um
obstáculo é a prática de dispersão da mente, porque a nossa
sociedade leva a nos distrair muito, e temos pouca paciência. Essa
mente que se distrai e quer tudo rápido é um obstáculo para o
momento presente. Temos de ter o exercício da paciência e viver o
presente tal como ele é. Os obstáculos estão na mente. Na época
em que comecei, esse conhecimento quase não era disponível. Agora
é, mas não temos tempo nem espaço na mente para isso.
- Qual a relação entre os Vedas, o Vedanta e a prática de Yoga (asanas/posturas)? Onde o Yoga e o Vedanta se encontram?
- Yoga e Vedanta estão
nos Vedas. O Yoga aparece nas Upanishads, mas não só como os oito
membros de Patañjali, e mais como na Bhagavadgita, um estilo de vida
que envolve várias práticas. O Vedanta é o estudo e o Yoga é o
estilo de vida. Eles estão juntos. Ambos fazem parte da tradição
védica, que é o corpo de conhecimento dos Vedas e de conhecimentos
que nasceram dos Vedas, como Yoga, Ayurveda, dança e música. O
estudo dos Vedas começa com uma análise chamada Purushartha
nishcaya: o ser humano busca quatro coisas: prazer, segurança, ação
correta (dharma) e liberação, plenitude (moksha). Antes de qualquer
estudo, os Vedas fazem essa análise de qual é o objetivo principal
na vida. Então, focando nele, que é a liberação, é necessário
saber qual o meio para ela: o autoconhecimento nos textos de Vedanta
e toda uma vida de Yoga, na forma de Karma Yoga, da relação com
Ishvara (o Todo, Deus), da meditação. Tudo isso, Yoga e Vedanta,
faz parte dos Vedas e do meio para atingir essa liberação final.
- Como uma pessoa que vive em sociedade, com tantas tarefas, é capaz de estudar Vedanta de forma adequada?
- O próprio ensinamento
de Vedanta e a Gita em particular colocam dois estilos de vida em
busca da liberação (de um sofrimento, de uma insatisfação
constante): um estilo de vida do sannyasin (renunciante), em que a
pessoa renuncia à sociedade – casa, filhos, trabalho – e vive
isolada, estudando e meditando; e outro em que o karma yogi vive na
sociedade, mas encaixa o estudo e o ensino também na sua vida com os
filhos, o trabalho etc. A gente acha – e Arjuna na Gita também
achava – que seria muito mais fácil a renúncia, porque você só
se dedica ao estudo. Por exemplo, se quero ler um livro, acabo muito
mais rápido se ficar só lendo do que se dividir a leitura com
outras tarefas. Mas o estudo depende de uma maturidade emocional e
afetiva, então renunciar a tudo e se dedicar só ao estudo requer
que a pessoa tenha capacidade, senão é muito pior. Quantas pessoas
param tudo para fazer sua tese de doutorado e não conseguem,
enquanto outras concluem uma tese mesmo trabalhando e com filhos? Não
é a quantidade de coisas que você faz que conta, mas a capacidade
de se concentrar. O mais importante é gerenciar sua vida com
disciplina e organização. O seu dia a dia e as exigências externas
vão ensinando a gerenciar porque na vida tudo acontece ao mesmo
tempo. Colocar o estudo no meio disso pode até ser mais eficaz,
porque já vi pessoas que param tudo para estudar em um ashram e
quando chegam lá, viram cozinheiros ou assistentes que ficam no
computador, não conseguem estudar. Podemos achar que quem está no
ashram chega mais rápido à liberação, mas ninguém chega à
liberação, chega ao conhecimento de que já é liberado – não
tem aonde chegar, tem o que compreender. Se você consegue gerenciar
todas as suas tarefas com meditação e aulas, aí eu diria que é o
melhor dos mundos, porque você tem oportunidade de ter mais
maturidade e de adquirir o conhecimento.
- É comum o estudante de Vedanta depositar a sua condição de felicidade em um momento futuro em que alcançará moksha (libertação). O que dizer sobre isso?
- Isso é um dos
obstáculos clássicos, todo mundo passa. É comum a gente projetar e
se preocupar com o momento da liberação, porque assim como a
liberação, temos outras buscas, como uma casa própria, um emprego
seguro… Pensamos em que dia vamos alcançar esses objetivos, e
tendemos a fazer isso com a liberação. Mas é um engano, pois a
liberação não tem dia porque você já é liberado, então não
tem um evento para acontecer, e sim um entendimento que leva um tempo
para assimilar vários fatores. Por exemplo, alguém conta uma piada.
Você não entende, mas os outros riem e você fica pensando em qual
a graça, come e, no banho, aquilo vem à sua mente: “Ah,
entendi!”. Nesse momento, você ri e relaxa. O processo de Vedanta
é também uma questão de entender. Você precisa ouvir
repetidamente até uma hora em que entende. Você não se transforma
em um ser absoluto, você se entende assim, é por isso que tem algo
como uma gargalhada, “Pô, como eu não vi isso antes?”.
- Como aplicar a visão do Vedanta em situações "cinza", isto é, nas quais não está clara a diferença entre o dharma e o adharma, o certo e o errado?
- O dharma tem dois significados:
• O que é o meu papel na vida e na
sociedade.
• Agir de acordo com os
valores universais.
Mas esses valores não
são absolutos. Por exemplo, ahimsa (não violência) é um grande
valor, mas quando você precisa de uma cirurgia, submete-se ao corte
e à dor deliberadamente. E isso acontece com outros valores, como
contar a verdade. Por isso os Vedas dizem que quando você tiver
dúvidas sobre dharma e adharma, kartavyam e akartavyam (o que deve e
o que não deve ser feito), busque outra pessoa, de preferência com
o conhecimento de Vedanta, que tenha valor pelo dharma e que não
esteja envolvida com a situação para ajudar a analisá-la.
- Quais são os papéis atribuídos a você no Vidya Mandir? As pessoas solicitam aconselhamento? Podemos considerar suas responsabilidades como uma liderança, assim como o Rei Yudisthira, sob o comando de um reino?
- Krishna fala na Gita
sobre o líder, que é o exemplo para as outras pessoas. Cada um de
nós é um líder em um grupo pequeno ou grande. Sem dúvida, de
alguma maneira, aqui no Vidya Mandir eu sou um líder, uma
referência. Mas Yudisthira era líder em um reino bem maior. Cada um
de nós tem uma função e responsabilidades com outras pessoas.
Existe esse meu papel como líder, como professora deste centro de
estudo que é mais do que uma sala de aula – com as gravações das
aulas que enviamos via CDs já tivemos grupos de estudo em várias
partes do País, de Livramento (RS) a Rondônia. Além disso,
publicamos livros. E temos o grupo das pessoas. O João Mazza estuda
comigo desde que comecei a dar aula, em 1979, já sabe o assunto e
continua vindo para se distrair, ouvir de forma diferente. A gente se
torna uma família, um satsanga. Eu recebo das aulas, mas nada das
publicações, CDs ou DVDs – isso volta para a publicação de mais
coisas. Durante muito tempo também realizamos as vindas do Swami
Dayananda. A sala é nossa, doação de um aluno que viu o valor
desse estudo. Sem dúvida, isso tudo precisa de um gerenciamento, mas
claro que conto com a ajuda de pessoas preciosas. Quanto ao
aconselhamento, é um dos muitos papéis de um professor na Índia.
Eu não faço isso no sentido de uma pessoa telefonar e eu dizer o
que fazer. Mas quando um aluno tem questões na vida, sento com ele e
tento ajudar a entender e a solucionar os problemas. Faço até como
um suporte ao estudo. Muitas vezes é preciso entender esse
conhecimento à luz dos problemas diários.
- Muitos brasileiros viajam para estudar Vedanta nos ashrams com os swamis, mas hoje temos como acessar esse ensinamento aqui, graças ao trabalho do Vidya Mandir. Ainda é preciso ir à Índia?
- O estudo de Vedanta
envolve as aulas em que a gente senta e escuta, uma reflexão, que se
faz nas aulas e depois, e uma contemplação, que se faz nas aulas e
depois só, em casa. Essa prática é suficiente para a aquisição
do conhecimento e da liberação. Porém, para que isso funcione, é
necessária uma mente com maturidade, discernimento, desapego, certas
qualificações que conseguimos com um estilo de vida que colabore
para isso, com meditação, valores, Yoga. Isso compreende toda uma
vida. Quem nunca foi à Índia pode conseguir. Mas quando se vê essa
cultura viva lá, com mais gente nessa mesma busca, a gente se
inspira.
- E foi isso que a fez voltar à Índia?
- O que me fez voltar
foram amigos e conhecer vários lugares de peregrinação que são
inspiradores e de muita devoção.
- Você lembra quantas vezes?
- Não tantas. Voltei ao
Brasil em 1978. Depois disso, só fui para lá em 1996 com um grupo
de alunos, em 2001 para um congresso de religiões com o Swamiji, em
2007 e também em 2010.
- Como o ensinamento de Vedanta pode impactar a nossa vida cotidiana?
- O conhecimento de Vedanta fala sobre realidade. A realidade absoluta do eu e do relativo como relativo. Quando só conhecemos o relativo, achamos que o relativo é tudo, é absoluto: o dia a dia é a coisa mais real que conhecemos, então ficamos na expectativa de que dure para sempre e nunca nos preparamos para a morte. Quando a gente conhece o absoluto, existe uma mudança radical na vida, porque você encara o relativo como relativo e vê que o perecível vai perecer. Então, para que sofrer com isso? Temos de entender o absoluto para colocar o relativo na sua verdadeira dimensão com tranquilidade e objetividade. Isso melhora muito a vida.
- Você encara a morte como algo mais tranquilo?
- Naturalmente. A morte é
a destruição de um estado. A gente não vai mais ver a pessoa, mas
ela vai continuar de outra forma. Esse entendimento faz com que a
gente relaxe. Para a pessoa que vai, ela continua indo, mas não
deixa de ser triste para quem fica. Deveríamos estar preparados para
isso, que é tão natural, mas não estamos.
- Swami Dayananda diz que devemos ter filhos para evoluir em nossa passagem na Terra. No entanto, cada vez mais pessoas deixam de tê-los. Gostaria de saber se escolher não ter filhos pode interferir no dharma.
- As sociedades mais
antigas dependem da estruturação das famílias e de papéis claros,
com casamento e filhos. Mas mesmo nas sociedades védicas já existe
o modelo de vida em que a pessoa renuncia a isso para se dedicar ao
autoconhecimento. Isso não é adharma, é uma possibilidade. Para a
pessoa que se casa, o filho é uma consequência do relacionamento e
de uma maturidade, você reavalia muita coisa, seus próprios valores
e objetivos… Eu não diria que é errado não querer filhos, mas é
uma pena que pessoas que tenham uma busca espiritual e uma prática
de Yoga optem por não tê-los, porque seria uma oportunidade de dar
conhecimento a crianças. Muitas vezes a pessoa opta por não ter
filhos para se dedicar mais ao caminho de Yoga sem entender que ter
filhos também é praticar Yoga.
- Na sua vida pessoal você conseguiu ver isso com clareza (Gloria tem dois filhos e uma filha)?
- Sem dúvida, sempre optei por tê los, não foi acaso. Porque vivendo na sociedade ocidental, devo estar encaixada o tanto quanto possível. Na Índia eu poderia ter vivido como renunciante, mas nunca quis. Tendo a vida aqui, sempre achei que era um fator muito importante para mim, um crescimento, e eles realmente fizeram parte da minha vida, do meu estudo e contribuíram para uma vida de Karma Yoga, nunca atrapalharam. É uma decisão pessoal, mas sempre digo que os yogis deveriam ter mais filhos.
- Existe algo a ser feito quando se opta por não ter filhos?
- Não. Mas uma vez,
durante uma palestra do Swami Dayananda no Brasil, uma pessoa
perguntou “Como neutralizo meu sentimento de culpa por ter feito um
aborto?”. Ele respondeu sem fazer julgamentos à pessoa: se há
culpa, pode-se escolher uma criança sem condições e pagar sua
escola, seu ensino completo, para atenuar esse sentimento.
- Qual a diferença entre espiritualidade e religião?
- Espiritualidade é mais
ampla do que religião. E fala mais profundamente para o ser humano.
As religiões basicamente estabelecem, por meio de ritos e práticas,
uma relação dual do indivíduo com esse Deus, o Criador o que
chamamos de Ishvara, o Todo. O hinduísmo é semelhante a outras
religiões, mas os Vedas, que são a base dessa religião, falam mais
de uma realidade que podemos chamar de espiritual, que é o
entendimento da natureza essencial do indivíduo como igual ao
Criador – a verdade última do indivíduo é a verdade última do
Criador. O conhecimento fundamental é o entendimento não dual dessa
realidade imutável e imortal: o indivíduo é o Todo. Para esse
conhecimento não é necessária religião. No Vedanta conhecemos a
religião no sentido de religar a esse Todo. A verdadeira
espiritualidade é descobrir que sempre fomos um único com o Todo; o
que separa é a ignorância.
- Que atitude temos de aplicar quando falsos gurus se encontram em nosso caminho?
- O papel de um mestre é muito importante porque sem ele não conseguimos fazer conexão com a tradição de conhecimento. Podemos pegar um livro e imaginar o que está querendo dizer, mas para entender precisamos de alguém que nos ensine. Ao mestre deveremos sempre confiança e gratidão porque nos fez conectar com essa tradição maravilhosa de ensinamento que nos abençoa. Mas também não dá para confiar de olhos fechados. Devemos buscar discernimento, ouvir outras pessoas e de nossas necessidades no momento. Às vezes a pessoa pode não ser um grande mestre, mas me conduz a algo mais – pode ser até saber o que não quero. Então o que podemos fazer é uma oração. Nessas horas nos resta rezar e não entregar tudo o que temos para uma pessoa que não conhecemos, e ir analisando aos poucos. Um ponto é importante: quando o professor começa a colocar o estudante muito dependente dele, tem alguma coisa errada. Porque esse conhecimento fala sobre libertação, então um professor que prende… Outra coisa: um professor que queira que o aluno preste muitas homenagens também tem algo errado.
- Como identificar um bom
professor de Vedanta?
- Ele tem de passar
pela metodologia de ensino por um período de tempo, porque é
preciso absorvê-la. Tem de ter o conhecimento e a capacidade de
ensinar, que nem sempre estão juntos. A capacidade de ensinar é uma
bênção divina. Para detectar o bom professor, observe se ele
ensina com clareza e se não precisa de muitas reverências.
- Qual é a função da entrega, da aceitação em uma tradição que enfatiza o conhecimento?
- O conhecimento exige
uma entrega. Para aprender qualquer coisa, o estudante tem de confiar
que o professor é bom. A confiança é um fator muito importante,
porque você vai aprender mais do que algo teórico, como química ou
física, vai aprender aquilo que você é, um conhecimento muito
sutil, que uma pessoa que já está vendo leva a outra a ver. Há uma
profundidade muito grande nisso.
- Vejo uma banalização do importante Gayatri Mantra. Pode esclarecer esse assunto para os yogis?
- Cada mantra existente
pertence a um dos quatro Vedas (Rig, Yajur, Sama e Atharva). As
famílias eram levadas a decorar um desses Vedas. No momento em que a
criança era iniciada nos Vedas, recebia o mantra que existe nos
quatro Vedas: Gayatri Mantra, do Sol. E havia todo um ritual para
isso. Na tradição, esse mantra deve ser ensinado com cuidados
específicos, não pode ser divulgado. Eu aprendi que quando uma
pessoa é iniciada, pode receber um dos muitos mantras como Om Nama
Shivaya, mas não o Gayatri, porque envolve várias práticas, como
não beber e não comer carne. Esse mantra infelizmente foi divulgado
inadequadamente até por indianos mesmo, na internet, repetido de
qualquer maneira porque as pessoas não aguentam um segredo. Se você
quiser ter um ganho de repetição de mantras, pode fazer qualquer
outro mantra; este tem uma maneira especial de cantar. Mas não
adianta criticar, é uma confusão do nosso tempo que permite muitas
possibilidades de disseminar e captar informações.
- Na terceira idade a memória começa a falhar, a mente fica mais lenta. De alguma forma isso pode auxiliar o akhanda akara vrittri?
- Akhanda akara vrittri é
um nome técnico para o pensamento no qual você se reconhece como o
Todo e descobre a não dualidade. Nossos pensamentos são
caracterizados por três fatores: o pensador, o pensado e o
pensamento. E não tem a ver com perda de memória, porque esse
pensamento pode aparecer enquanto você está estudando, pensando ou
meditando: porque não é uma questão de lembrar, é uma questão de
ser, e você já é, não precisa lembrar de ser.
- O que fazer quando
após anos de prática e estudo nos pegamos cometendo os mesmos
erros?
- A gente tem de rir, não
tem outro jeito. “Meu Deus, quanto estudo e fiz essa besteira, não
estou rindo porque fiz uma besteira, mas porque estou me dando conta
de que fiz a besteira.” Quando reconheço que cometi um engano, se
reajo com raiva é porque estou me identificando com o engano. Então
tem que rir!
- Qual é a atitude de Yoga na ação?
- É por um lado ter a
atenção para fazer aquilo que cabe a você nos vários
relacionamentos e papéis que tem de cumprir. Isso em contraste com
fazer somente aquilo que você quer fazer. Se o que quer fazer
combina com o que deve, ótimo. Mas se as duas coisas entram em
conflito, tente deixar o desejo de lado e cumprir seu papel. Esse é
um aspecto de Karma Yoga, e não é fácil. O outro aspecto de Karma
Yoga é lidar com as consequências das ações. Quando o resultado
vem, receba como uma resposta adequada à ação que foi feita para
você. No momento em que escolheu a ação, existiam várias
possibilidades de respostas, essa foi a que veio. Então receba em
vez de ficar reclamando, ou culpando, e tente na próxima vez ou
imediatamente fazer uma ação melhor para ter o resultado que quer.
- Há premissas do Vedanta, como a frase “você já é a felicidade que busca”, repetidas em contextos que chegam a pessoas em diversos níveis da busca. Isso não pode perturbar em vez de ajudar?
- Bem, como você disse,
há pessoas em vários níveis de clareza ou não clareza da própria
busca. A uma pessoa que está sofrendo por causas relativas e não
questionamentos, não devemos falar de Vedanta, a não ser que seja
um estudante. Temos de tratar dos problemas relativos com enfoques
relativos. Enfoque absoluto, aqui, é simplificar um ensinamento tão
profundo. Vedanta não é frase feita, é metodologia de ensinamento.
Uma frase não faz nada. Você dizer que ela é a felicidade que
busca pode “matar”, irritar a pessoa. Essas frases não funcionam
e o Vedanta não tem esse objetivo. Primeiro trate do relativo;
quando a pessoa estiver capacitada, ela perguntará sobre o absoluto.
- A sua longa trança tem inspiração no estilo das indianas?
- Nasci em 1953, e na época as crianças andavam de tranças. Eu geralmente usava duas, e tive cabelo comprido até os 17 anos. Como uma boa adolescente, me rebelei, cortei bem curto e fiz permanente. Não foi o look de que gostei (risos)! Deixei crescer porque tenho muito cabelo, e curto ele fica armado. Como sinto muito calor, deixá-lo preso é a melhor opção e a mais fácil. Quando cheguei à Índia, vi que usavam assim também, e fui inspirada a ter esse penteado. E lá sempre diziam que o cabelo era bonito e fui deixando. Quando ficou branco, também combinou com a trança. Eu gosto e os indianos também, porque ele se mantém grosso. Acho que é de família, porque não trato com nada especial, só passo óleo de coco para assentar e tirar o ressecado.
- Qual é a passagem da Bhagavadgita que considera mais importante e qual é a mais especial?
-
O início da Gita, a confusão e o desespero de Arjuna e a maneira
como Krishna lida, enfatizando primeiro o autoconhecimento, realmente
é uma coisa incrível, porque ele dá a solução a Arjuna colocando
que tudo isso acontece devido a uma confusão sobre o objetivo último
da vida, o entendimento de quem você é fundamentalmente. Quando
Arjuna pede uma solução definitiva, “o que vai me libertar?”,
Krishna primeiro fala claramente sobre o absoluto e depois lida com o
relativo. Esse lidar de Krishna realmente é incrível, ele lida
belamente com aquilo tudo, mas não fica só na estratosfera, fala
sobre o dharma. Isso é maravilhoso. Sempre que começo a ler o
capítulo 1 e o começo do capítulo 2, fico de cabelo em pé, porque
é emocionante alguém trazendo aquela resposta naquele momento. Há
vários momentos incríveis. No capítulo 2, quando Krishna diz que o
absoluto não muda e seu corpo e sua mente são relativos e mudam, e
questiona “se a mudança é inevitável, por que sofrer?”, é
lindo também. A Gita toda é maravilhosa e completa, não existe
nada igual.
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