10 maio 2012

MATRIZ, MÃE, MATERNIDADE


Por: Monika von Koss


"De todas as forças que impactaram os grupos humanos ao longo de seu processo evolutivo, a mais fundamental é a maternidade. A força da maternidade é prevalente, porque sem ela não haveria humanidade, sem ela não haveria existência.
É provável que nossos ancestrais remotos não vivenciassem a Mãe Primordial como um ser personificado, mas como uma força que atuava através de tudo que é vivo. A própria força da vida, que ficava evidente no parir das fêmeas e na relação delas com a prole, uma força matriz caracterizada por uma qualidade de cuidado, que denominamos de maternal.
Baseado na percepção do parir, da vida emergindo do interior aquoso do corpo da fêmea, o mundo criado também foi entendido como tendo nascido do oceano-útero cósmico, razão pela qual encontramos o tema das águas primordiais como a origem da vida, nas mais diferentes culturas.
Thales de Mileto chamou estas águas de arché, a ‘causa primeira no começo de todas as coisas’. Em seu sentido de começo, origem, arché compõe palavras como arcaico earquétipo. E é neste sentido que entra na composição da palavra matriarcado, que deve ser lida como ‘na origem, a mãe’.
A criação e o nascimento são inseparáveis da figura da mãe, que nos mitos mais antigos era a divisora das águas, criadora do céu e da terra. No neolítico, ela foi cultuada como a fonte das águas que sustentam a vida, águas que caíam do céu em forma de chuva ou brotavam da terra como fonte, rio ou lago; em todas as épocas, a água representou o poder gerador da grande mãe, a diferença entre a vida e a morte, os dois grandes eventos sobre os quais ela reina incontestável.
Nas fases iniciais da evolução humana, a força que sustentava o campo social era a maternidade, sendo a deusa-mãe geradora de vida a figura central religiosa de qualquer agrupamento humano. O sábio indiano Narendra Bhattacharyya, em History of Sakta Religion, a define como “a deusa cujos humores eram refletidos por fenômenos naturais, cujos amantes eram os espíritos da estação e cujas qualidades foram especializadas pelas deusas posteriores”.
Enquanto gestar e parir são ações biológicas restritas às mulheres, o impulso para maternar, aquilo que costumamos chamar de amor materno, é a expressão do desejo humano de conservar e promover a vida. E como todo desejo humano, é uma escolha mais ou menos consciente, disponível a qualquer ser humano.
O impulso para maternar independe da maternidade biológica, como bem o demonstram mulheres e homens que dedicam sua vida a cuidar de outros, independentemente de serem crianças ou seus filhos biológicos. Não há um instinto maternal, que surge automaticamente da ação biológica do parir, como fica evidente no fenômeno conhecido como depressão pós-parto. Manter e nutrir a vida são escolhas que fazemos; mas, pelo fato destas escolhas terem sido feitas conscientemente por milhares de anos e milhões de seres humanos, ficaram tão profundamente enraizadas na própria essência humana, que a tomamos por asseguradas e nos surpreendemos, quando não ocorrem. Em condições normais, o amor materno é uma emoção resistente e teimosa, que pode ser expressa por todo ser humano.
Historicamente, a ação de maternar está mais associada à mulher, por ser ela a nutridora biológica no início da vida. Mas nutrir não significa apenas alimentar, significa criar um espaço relacional de total aceitação e confiança mútua, baseado em uma convivência corporal íntima, elementos fundamentais para o bom desenvolvimento psíquico e emocional de todo ser humano.
"A relação materno-infantil é um fenômeno biológico humano que envolve a mãe não como mulher, mas como um adulto numa relação de cuidado” escreve Humberto Maturana emAmar e Brincar. Portanto, não é uma tarefa associada ao sexo, mas está muito mais associada com um contato corporal amoroso, que pode ser exercido por qualquer adulto e que vai definir o modo como nos relacionamos e expressamos, à medida que crescemos.

Há diferentes estilos de maternagem, como nos revelam as grandes deusas-mãe dos diversos universos mitológicos.
Na China temos Kuan-Yin, a deusa da compaixão ilimitada, aquela que ouve os gritos do mundo. Ela contempla perpetuamente o frasco dourado de seu próprio ventre, que produz todo o mundo. Ela permeia tudo com extrema suavidade e não exige nada. Ela é a mãe que nos ama de modo incondicional.
No Egito, temos Nut, o firmamento estrelado, que envolve toda a vida no planeta em um gesto de proteção cuidadosa, acolhendo inclusive a morte. Seu corpo-firmamento é a matriz do universo, que se inclina sobre a vaca celeste com o sol em seus cornos, para ele fertilizar com seus raios a terra negra, assegurando nossa sobrevivência. Ela é a mãe que nos protege.
Na Grécia, temos Gaia, a mãe planeta Terra, que é a própria existência material, nossa casa e a mãe das mães. Sua filha Deméter é a deusa-mãe da agricultura, a terra produtiva que gera o cereal que nutre e sustenta a vida. Elas são as mães que nos alimentam.
As mães humanas fazem tudo isto por escolha. E por ser uma escolha, a maternidade é vulnerável à manipulação ambiental, cultural e social.Enquanto maternar é uma escolha, como a realizamos é definido culturalmente e foi se modificando ao longo da história humana, como expõe exaustivamente Shari L. Thurer em The Myths of Motherhood [Os mitos da maternidade].
Na pré-história, quando a opção de maternar ficava a cargo das mulheres, elas escolheram conservar a vida, no sentido de preservar o corpo físico para a continuidade da espécie. Levando em consideração a sobrecarga representada pela maternidade naquelas condições primordiais, a real motivação para maternar foi o amor.
Quando a base econômica dos grupos humanos passou a ser o pastoreio, o parir das fêmeas, animais e humanas, se tornou uma fonte de riqueza. Quando o homem passou a exercer o poder sobre a mulher e sua prole, passou a prevalecer a utilidade social e econômica, entendida como o uso do corpo para a geração de riqueza, para o trabalho e para a guerra. Na idade clássica grega, a mãe cuidava apenas das crianças que eram escolhidas para se tornarem adultos, a escolha cabendo ao pai. Domínio, poder e riqueza determinavam a maternagem.
Na Idade Média, surge uma imagem materna idealizada, a maternidade separada da sexualidade. Não existia ainda a noção de infância, sendo que, a partir dos sete anos de idade, a criança já era considerada adulta e encaminhada para sua função. Com a redução do corpo feminino à função procriadora, dissociada da experiência do prazer, a mulher passou a ser classificada como santa ou prostituta. Seu corpo já não lhe pertencia, era apenas um instrumento, e a maternidade, dissociada do corpo, foi santificada.
Na modernidade, surge o conceito de ‘boa mãe’, uma mulher bem casada, fiel, subserviente e modesta. A mulher se tornou parte da mobília mental do homem e dos filhos, o anjo da casa. Como pessoa, estava a serviço da família nuclear idealizada. A maternagem se resumia à execução das regras estabelecidas por cientistas especializados na criação de filhos. A motivação para maternar passou a ser o sucesso social do marido e dos filhos.
A partir do século XX, presenciamos a reintegração da mulher como pessoa, como elemento atuante na teia social, para além de sua função procriadora e nutridora no seio familiar. Ao saírem de casa para trabalhar, as mães caíram do pedestal e muitas mulheres passaram a viver o conflito entre ser mulher e ser mãe, entre realizareem suas aspirações genuínas como pessoas e as expectativas sociais tradicionalmente depositadas nelas.
O presente sistema de crenças, que fundamenta nossa ação no mundo, é um mosaico destes estágios históricos a respeito da maternidade. Por isto, é urgente revermos nossas crenças e expectativas coletivas em relação à maternidade, para criarmos um sistema que agregue todas as pessoas envolvidas neste ato fundamental para a vida, a fim de criarmos um futuro mais harmonioso.
Em um sentido mais amplo, somos todos integrantes da grande família humana, o que nos torna responsáveis uns pelos outros. Mais especificamente, quando um homem e uma mulher se encontram e trazem novas vidas ao mundo, ambos são igualmente responsáveis pelos cuidados de sua prole. Como estes cuidados serão distribuídos e exercidos pode depender de inúmeros fatores, em cada caso particular. Mas a idéia de que são primordialmente as mulheres que devem exercer os trabalhos de maternagem não é mais sustentável hoje, em que o envolvimento físico e emocional do pai na criação dos filhos se tornou um fator de fundamental importância.
Precisamos nos perguntar quais são as reais necessidades das crianças, aquelas que precisam ser atendidas, para que elas se desenvolvam e se tornem membros saudáveis e felizes da comunidade humana, sem que isto esgote a energia de mulheres e homens no exercício de suas funções como progenitores. Precisamos refletir a respeito de quais recursos a comunidade humana como um todo precisa colocar à disposição dos adultos, para que eles possam desempenhar satisfatoriamente suas funções sociais e familiares, sem negligenciar suas próprias aspirações genuínas.
Para desenvolvermos um modelo de maternidade que esteja à altura de uma nova ordem social, precisamos ampliar a noção de maternidade, retirando-a exclusivamente do universo biológico. Precisamos entendê-la como uma maneira de criar uma nova comunidade, mais ampla e inclusiva, que proporcione a todos os seus integrantes os meios de realizar suas contribuições para esta comunidade de um modo digno, sejam estes meios econômicos, físicos, emocionais, ocupacionais, educacionais, espirituais.
Colocar o valor e o cuidado da vida como objetivo primeiro em todas as nossas ações significa resgatar a escolha original das mães ancestrais. Significa promover a vida em todas as suas formas de manifestação, re-estabelecendo a unidade primordial da criação.
E você sempre pode começar consigo mesmo, maternando amorosamente todas as suas diversas partes, principalmente aquelas que você gostaria de deixar de lado, nutrindo e cuidando de si mesma, para que você se torne um membro valoroso desta família humana. Enquanto você materna a si mesma, você estará maternando a humanidade".

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