Por: Monika von Koss
"De
todas as forças que impactaram os grupos humanos ao longo de seu
processo evolutivo, a mais fundamental é a maternidade. A força da
maternidade é prevalente, porque sem ela não haveria humanidade,
sem ela não haveria existência.
É provável que
nossos ancestrais remotos não vivenciassem a Mãe Primordial como um
ser personificado, mas como uma força que atuava através de tudo
que é vivo. A própria força da vida, que ficava evidente no parir
das fêmeas e na relação delas com a prole, uma força matriz
caracterizada por uma qualidade de cuidado, que denominamos de
maternal.
Baseado na
percepção do parir, da vida emergindo do interior aquoso do corpo
da fêmea, o mundo criado também foi entendido como tendo nascido do
oceano-útero cósmico, razão pela qual encontramos o tema das águas
primordiais como a origem da vida, nas mais diferentes culturas.
Thales
de Mileto chamou estas águas de arché,
a ‘causa primeira no começo de todas as coisas’. Em seu sentido
de começo, origem, arché compõe
palavras como arcaico
earquétipo.
E é neste sentido que entra na composição da palavra matriarcado,
que deve ser lida como ‘na origem, a mãe’.
A criação e o
nascimento são inseparáveis da figura da mãe, que nos mitos mais
antigos era a divisora das águas, criadora do céu e da terra. No
neolítico, ela foi cultuada como a fonte das águas que sustentam a
vida, águas que caíam do céu em forma de chuva ou brotavam da
terra como fonte, rio ou lago; em todas as épocas, a água
representou o poder gerador da grande mãe, a diferença entre a vida
e a morte, os dois grandes eventos sobre os quais ela reina
incontestável.
Nas
fases iniciais da evolução humana, a força que sustentava o campo
social era a maternidade, sendo a deusa-mãe geradora de vida a
figura central religiosa de qualquer agrupamento humano. O sábio
indiano Narendra Bhattacharyya, em History
of Sakta Religion,
a define como “a deusa cujos humores eram refletidos por fenômenos
naturais, cujos amantes eram os espíritos da estação e cujas
qualidades foram especializadas pelas deusas posteriores”.
Enquanto gestar
e parir são ações biológicas restritas às mulheres, o impulso
para maternar, aquilo que costumamos chamar de amor materno, é a
expressão do desejo humano de conservar e promover a vida. E como
todo desejo humano, é uma escolha mais ou menos consciente,
disponível a qualquer ser humano.
O impulso para
maternar independe da maternidade biológica, como bem o demonstram
mulheres e homens que dedicam sua vida a cuidar de outros,
independentemente de serem crianças ou seus filhos biológicos. Não
há um instinto maternal, que surge automaticamente da ação
biológica do parir, como fica evidente no fenômeno conhecido como
depressão pós-parto. Manter e nutrir a vida são escolhas que
fazemos; mas, pelo fato destas escolhas terem sido feitas
conscientemente por milhares de anos e milhões de seres humanos,
ficaram tão profundamente enraizadas na própria essência humana,
que a tomamos por asseguradas e nos surpreendemos, quando não
ocorrem. Em condições normais, o amor materno é uma emoção
resistente e teimosa, que pode ser expressa por todo ser humano.
Historicamente,
a ação de maternar está mais associada à mulher, por ser ela a
nutridora biológica no início da vida. Mas nutrir não significa
apenas alimentar, significa criar um espaço relacional de total
aceitação e confiança mútua, baseado em uma convivência corporal
íntima, elementos fundamentais para o bom desenvolvimento psíquico
e emocional de todo ser humano.
"A
relação materno-infantil é um fenômeno biológico humano que
envolve a mãe não como mulher, mas como um adulto numa relação de
cuidado” escreve Humberto Maturana emAmar
e Brincar. Portanto,
não é uma tarefa associada ao sexo, mas está muito mais associada
com um contato corporal amoroso, que pode ser exercido por qualquer
adulto e que vai definir o modo como nos relacionamos e expressamos,
à medida que crescemos.
Há
diferentes estilos de maternagem, como nos revelam as grandes
deusas-mãe dos diversos universos mitológicos.
Na China temos
Kuan-Yin, a deusa da compaixão ilimitada, aquela que ouve os gritos
do mundo. Ela contempla perpetuamente o frasco dourado de seu próprio
ventre, que produz todo o mundo. Ela permeia tudo com extrema
suavidade e não exige nada. Ela é a mãe que nos ama de modo
incondicional.
No Egito, temos
Nut, o firmamento estrelado, que envolve toda a vida no planeta em um
gesto de proteção cuidadosa, acolhendo inclusive a morte. Seu
corpo-firmamento é a matriz do universo, que se inclina sobre a vaca
celeste com o sol em seus cornos, para ele fertilizar com seus raios
a terra negra, assegurando nossa sobrevivência. Ela é a mãe
que nos protege.
Na Grécia,
temos Gaia, a mãe planeta Terra, que é a própria existência
material, nossa casa e a mãe das mães. Sua filha Deméter é a
deusa-mãe da agricultura, a terra produtiva que gera o cereal que
nutre e sustenta a vida. Elas são as mães que nos alimentam.
As
mães humanas fazem tudo isto por escolha. E por ser uma escolha, a
maternidade é vulnerável à manipulação ambiental, cultural e
social.Enquanto maternar é uma escolha, como a realizamos é
definido culturalmente e foi se modificando ao longo da história
humana, como expõe exaustivamente Shari L. Thurer em The
Myths of Motherhood [Os
mitos da maternidade].
Na pré-história,
quando a opção de maternar ficava a cargo das mulheres, elas
escolheram conservar a vida, no sentido de preservar o corpo físico
para a continuidade da espécie. Levando em consideração a
sobrecarga representada pela maternidade naquelas condições
primordiais, a real motivação para maternar foi o amor.
Quando a base
econômica dos grupos humanos passou a ser o pastoreio, o parir das
fêmeas, animais e humanas, se tornou uma fonte de riqueza. Quando o
homem passou a exercer o poder sobre a mulher e sua prole, passou a
prevalecer a utilidade social e econômica, entendida como o uso do
corpo para a geração de riqueza, para o trabalho e para a guerra.
Na idade clássica grega, a mãe cuidava apenas das crianças que
eram escolhidas para se tornarem adultos, a escolha cabendo ao pai.
Domínio, poder e riqueza determinavam a maternagem.
Na Idade Média,
surge uma imagem materna idealizada, a maternidade separada da
sexualidade. Não existia ainda a noção de infância, sendo que, a
partir dos sete anos de idade, a criança já era considerada adulta
e encaminhada para sua função. Com a redução do corpo feminino à
função procriadora, dissociada da experiência do prazer, a mulher
passou a ser classificada como santa ou prostituta. Seu corpo já não
lhe pertencia, era apenas um instrumento, e a maternidade, dissociada
do corpo, foi santificada.
Na modernidade,
surge o conceito de ‘boa mãe’, uma mulher bem casada, fiel,
subserviente e modesta. A mulher se tornou parte da mobília mental
do homem e dos filhos, o anjo da casa. Como pessoa, estava a serviço
da família nuclear idealizada. A maternagem se resumia à execução
das regras estabelecidas por cientistas especializados na criação
de filhos. A motivação para maternar passou a ser o sucesso social
do marido e dos filhos.
A partir do
século XX, presenciamos a reintegração da mulher como pessoa, como
elemento atuante na teia social, para além de sua função
procriadora e nutridora no seio familiar. Ao saírem de casa para
trabalhar, as mães caíram do pedestal e muitas mulheres passaram a
viver o conflito entre ser mulher e ser mãe, entre realizareem suas
aspirações genuínas como pessoas e as expectativas sociais
tradicionalmente depositadas nelas.
O presente
sistema de crenças, que fundamenta nossa ação no mundo, é um
mosaico destes estágios históricos a respeito da maternidade. Por
isto, é urgente revermos nossas crenças e expectativas coletivas em
relação à maternidade, para criarmos um sistema que agregue todas
as pessoas envolvidas neste ato fundamental para a vida, a fim de
criarmos um futuro mais harmonioso.
Em um sentido
mais amplo, somos todos integrantes da grande família humana, o que
nos torna responsáveis uns pelos outros. Mais especificamente,
quando um homem e uma mulher se encontram e trazem novas vidas ao
mundo, ambos são igualmente responsáveis pelos cuidados de sua
prole. Como estes cuidados serão distribuídos e exercidos pode
depender de inúmeros fatores, em cada caso particular. Mas a idéia
de que são primordialmente as mulheres que devem exercer os
trabalhos de maternagem não é mais sustentável hoje, em que o
envolvimento físico e emocional do pai na criação dos filhos se
tornou um fator de fundamental importância.
Precisamos nos
perguntar quais são as reais necessidades das crianças, aquelas que
precisam ser atendidas, para que elas se desenvolvam e se tornem
membros saudáveis e felizes da comunidade humana, sem que isto
esgote a energia de mulheres e homens no exercício de suas funções
como progenitores. Precisamos refletir a respeito de quais recursos a
comunidade humana como um todo precisa colocar à disposição dos
adultos, para que eles possam desempenhar satisfatoriamente suas
funções sociais e familiares, sem negligenciar suas próprias
aspirações genuínas.
Para
desenvolvermos um modelo de maternidade que esteja à altura de uma
nova ordem social, precisamos ampliar a noção de maternidade,
retirando-a exclusivamente do universo biológico. Precisamos
entendê-la como uma maneira de criar uma nova comunidade, mais ampla
e inclusiva, que proporcione a todos os seus integrantes os meios de
realizar suas contribuições para esta comunidade de um modo digno,
sejam estes meios econômicos, físicos, emocionais, ocupacionais,
educacionais, espirituais.
Colocar o valor
e o cuidado da vida como objetivo primeiro em todas as nossas ações
significa resgatar a escolha original das mães ancestrais. Significa
promover a vida em todas as suas formas de manifestação,
re-estabelecendo a unidade primordial da criação.
E você sempre
pode começar consigo mesmo, maternando amorosamente todas as suas
diversas partes, principalmente aquelas que você gostaria de deixar
de lado, nutrindo e cuidando de si mesma, para que você se torne um
membro valoroso desta família humana. Enquanto você materna a si
mesma, você estará maternando a humanidade".
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