23 março 2012

O poder do útero



No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas (Gn:1-2)

No princípio, a Terra era um grande útero: informe, vazia e mergulhada numa húmida escuridão. Era terra, água, silêncio e espaço.

A espiritualidade e a sexualidade, essas tremendas forças motrizes que em grande medida escapam à compreensão humana, são dois temas fundamentais para a humanidade desde o passado mais recuado. Os mistérios da reprodução, os ciclos da vida e da morte, a fertilidade da mulher e da natureza, o renovamento agrícola e animal na Primavera e a sua morte ou adormecimento no Inverno, o nascimento da luz em cada manhã e o seu desaparecimento nocturno, as luas cheias e vazias, o sangue menstrual, a gravidez e o parto, todos estes acontecimentos assombrosos e incontroláveis foram objecto de outros tantos ritos e cultos destinados a conquistar estas forças.
       Muitos rituais primitivos tinham lugar em cavernas, poderosos símbolos uterinos, onde ficaram gravadas – em salas a tais distâncias e profundidades, e com acessos tão difíceis, que se torna evidente terem sido utilizadas apenas para fins sagrados – pinturas rupestres evocadoras dos ciclos da vida e da morte, da caça e da fertilidade. Quando os rituais estavam ligados a sepultamentos, parece existir já uma ligação entre a terra (caverna, montanha, etc.), o útero e a possibilidade de renascimento, relação que será posteriormente atestada em culturas com uma religião e rituais já plenamente desenvolvidos. O corpo é enterrado como uma semente no ventre da terra, muitas vezes em posição fetal (típico do período Paleolítico) ou em sepulturas ou recipientes redondos, forma simbólica do feminino.
Muito mais tarde, e até hoje em dia, a disposição de estruturas em torno de um centro será utilizada em baptistérios e monumentos funerários, estando portanto ligada à noção de morte e ressurreição. O mesmo acontece com locais iniciáticos, que se reportam a uma realidade semelhante: morrer para um determinado tipo de vida (material, ou profana) e renascer para outra mais elevada (espiritual, ou eterna). Nos ritos de purificação (iniciação ou baptismo) é ainda necessário o atravessamento das águas, por vezes em rios subterrâneos, o que reforça a ideia de morte e renascimento no útero/caverna/espaço circular, após a passagem das águas amnióticas. Tais águas podem ser ultrapassadas duas vezes, no caso de uma vida profana (no nascimento e na morte – basta lembrar a barca de Caronte conduzindo as almas dos mortos através do rio Estige) e quatro vezes no caso do iniciado, como vimos acima.
       O útero é assim reconhecido como berço e cadinho da Criação, local sagrado ou templo onde reina o silêncio primordial, fonte de vida, de vigor e de nutrimento, antídoto da morte e facilitador de toda a ressurreição, imagem do lar original de onde provém todos os seres viventes e símbolo do colo e do calor maternal.
       Mas vivemos hoje, e desde há muito, num mundo onde o princípio feminino universal foi sendo progressivamente reprimido, ou até violentamente subjugado, por um princípio masculino também ele descentrado e desligado dos seus valores autênticos. Hoje em dia, a Terra é mais escrava do que mãe, e o que eram antes os seus tesouros são agora o nosso saque. O útero feminino só é reconhecido como incubadora que a ciência (ainda) não conseguiu igualar, e bastará observar o cânone de beleza actual para compreender o que fizemos ao próprio centro do feminino sagrado.
       Na Idade Média, a celebração da formosura de uma mulher implicava – na pintura ou na poesia – uma referência, mais ou menos subtil, ao ventre evidente e suavemente arredondado que as suas vestes salientavam. Agora, tanto o imaginário masculino como a vaidade feminina procuram um ventre liso – ou mais do que liso, até mesmo côncavo – um espaço vazio no exterior do corpo que simbolicamente pressiona até esmagar o espaço vazio do interior, esse lugar mágico onde todo o potencial poderia ser gerado. Que seria de uma mulher, sem o vazio cósmico e criador do seu útero? E que seria de um homem, sem este espaço sagrado e silencioso que nunca se recusa àquele que o procura de coração aberto, e onde brota, segundo o Taoísmo, a verdadeira fonte da vida?
       As práticas xamânicas reconhecem desde sempre um valor mágico muito real ao vazio uterino. Nos famosos relatos de Carlos Castaneda, o feiticeiro Don Juan lamenta que as mulheres só usem o útero para a reprodução, ignorando totalmente as suas inúmeras potencialidades espirituais. No útero, as mulheres podem gerar e armazenar o poder da vida ou da morte – o poder de Kali, a negra – a criação e a destruição. Mas quantas mulheres desconhecem o poder dos seus úteros, ou sequer o consideram como algo mais do que um instrumento útil numa única situação, e um embaraço em todas as outras?
       O coração é nobre, os pulmões têm uma bela função, e a maior parte dos órgãos têm a sua dignidade reconhecida. Entre eles, o útero deveria reinar, pelo menos a par do coração (entre algumas antigas culturas tribais, as mulheres foram reconhecidas como aquelas que têm dois corações). Em vez disso, não é socialmente aceite que uma mulher mencione o útero em público, e muitas vezes nem mesmo entre outras mulheres. O útero, e tudo que dele advém, é indesejável durante a maior parte da vida, e muitos médicos advogam a sua ablação sempre que não se desejam mais filhos. Segundo a Dra. Christiane Northrup, só nos Estados Unidos 600,000 mulheres fazem histerectomias todos os anos, e a maior parte destas operações são desnecessárias.
       Em vez de temê-lo ou ignorá-lo, as mulheres fariam melhor se tentassem conhecer este lugar misterioso que guardam em si. O primeiro segredo do útero é que ele é muito mais do que as suas paredes, aquilo que podemos ver e tocar: é sobretudo o espaço que estas paredes cercam, a realidade eterna, imutável, não-formada e silenciosa que serve de pano de fundo a toda a Criação e, por inerência, a toda a criatividade. Nele é concebida e gerada toda a “matéria”, incluindo a matéria dos nossos sonhos.
Para além de um segundo coração, o útero é também um segundo cérebro; mas é um cérebro onde domina o hemisfério direito, o lado não-linear, intuitivo, sintético, emocional, abrangente, imagético.
       Em todas as meninas se deveria celebrar a maravilha da existência de um útero, da mesma forma que aos rapazinhos a sociedade ensina a terem orgulho nos órgãos masculinos. E todas as mulheres deveriam considerar a saúde e equilíbrio do seu útero como uma responsabilidade sua, e não apenas como uma obrigação médica. É preciso compreender que o conhecimento do ciclo menstrual, sempre que tal seja possível, faz parte do conhecimento de si – esse “santo graal” da psicologia moderna, que é em essência o cerne de toda a espiritualidade tradicional e o mais profundo destino do ser humano. O conhecimento de si é algo integral, que não respeita apenas à psique ou alma. Desprezar o corpo como algo inferior e indigno do auto-conhecimento corresponde a um desenraizamento que, a longo prazo, seria mortal para o homem.
       Meditar sobre o útero é meditar sobre o abismo cósmico onde nasceu toda a Vida. Honrá-lo em si é honrá-lo fora de si, e criar a partir dele é criar a partir do próprio Universo. Por toda a eternidade Deus jaz numa cama de parto, dando à Luz. A essência de Deus é dar à Luz, dizia Meister Eckhart, o mais belo dos místicos medievais. Em cada uma de nós existe este espaço sagrado onde a energia se torna matéria, iluminando o mundo. De que mais magia necessitamos, quando a magia é o próprio funcionamento da realidade?


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