Por Mark Perry
Tudo na criação gira em torno de um centro, isto pelo simples facto de que todas as coisas têm uma origem à qual não podem escapar. E esta origem é também o seu fim pois, à imagem das árvores, todas as criaturas têm raízes, mesmo que invisíveis; assim, uma criatura só se pode desviar em relação à sua base. Por muito que as aparências nos indiquem o contrário, uma trajectória em linha recta apenas é conspícua quando a sua origem e fim são velados, esquecidos ou rejeitados. A fuga em frente dos seres e dos eventos parece sugerir uma trajectória linear lançada ao longo de um eixo em constante retrocesso. Estas sucessões de existências, aparentemente livres de convergir ou divergir de outras existências paralelas, surgem como que arremessadas ao longo de linhas cujo fim é completamente estranho à sua origem, o que causa a impressão de ser a linha e não o círculo o princípio operativo da manifestação. Esta ilusão de perspectiva é ainda mais reforçada pela nossa cultura moderna que obriga as pessoas a se adaptarem a uma constante mudança. Vivemos tempos de estonteante obsolescência, tempos em que a excitação pela novidade mascara a destruição da tradição, o frenesi da mudança trivializa a realização, a fatuidade do progresso deprecia o valor do património. O que a história e a cultura poderão ganhar com um apelo nostálgico face a este desprezo, nunca o poderão recuperar realmente em prestígio intelectual. O que caracterizava a primeira era da humanidade, a Krita Yuga das escrituras sagradas hindus, era a noção de Centro e o mito do Eterno Retorno, altura em que governava a ideia de repetição – e não de mudança – em torno de um princípio perene. Tal deve-se, em parte, ao facto dessa primeira era estar tão próxima da origem que praticamente se identificava integralmente com ela. No entanto, através de um movimento de expansão, semelhante a uma espiral sempre crescente, a humanidade cresce/cai da sua origem divina e, sem ser capaz de escapar a esse movimento em torno do centro, continua a afastar-se cada vez mais e, ao mesmo tempo, a ganhar velocidade.
Se podemos caracterizar o homem antigo como estático, em conformidade com uma visão da existência centrada no espaço e não no tempo, podemos então caracterizar o homem moderno, o homem do Kali Yuga, como dinâmico, em conformidade com uma visão da existência centrada no tempo e na mudança e, consequentemente, na destruição. A preservação da tradição era o valor essencial do homem antigo que, através dos ritos sazonais celebrados, mantinha sempre presente a ideia de renovar e garantir a ligação com o centro original. Mas para uma civilização viciada no progresso, que avança com base no pressuposto da prévia ignorância humana, quando não no da inferioridade, romper com o molde “embrutecedor” da tradição torna-se imperativo. O que é esquecido é que – voltando à imagem da espiral – a tendência é para girar cada vez mais distante, até que tudo gire fora de controlo; isto é cada vez mais evidente na medida em que vivemos num mundo onde a velocidade tem acelerado em proporção directa com a supressão e transformação do passado. Este facto, apesar da excitante atracção que provoca, é inerentemente aberrante e destabilizador; o homem não pode viver num ritmo cada vez mais frenético sem se alienar de si próprio. Por outro lado, não deixa de ser uma componente necessária de um ciclo, que não pode terminar de outra forma que não em desintegração. Esta constatação não se trata de pessimismo, mas sim de realismo cosmológico.
Se o ponto de vista do homem fosse suficientemente elevado, ele libertar-se-ia da ilusão de linearidade, recordaria as origens e preveria as conclusões; ele compreenderia as consequências. De todo o modo, os exemplos do princípio circular abundam, seja na doutrina hindu dos ciclos milenares (manvantaras), a qual os quais já mencionámos, ou nos periodos dos Estóicos, seja no carrossel das estações ou nas ondas concêntricas num lago provocadas por uma gota de água, nas órbitas das grandes galáxias ou nos círculos dos falcões, nos ciclos dos dias e dos anos, nada se exclui a esta lei cuja benevolente imanência – a força que move o sol e as restantes luminárias, segundo Dante – salva a cada instante a manifestação de se desintegrar no nada que está continuamente a sugá-la. O círculo é o dharma perfeito, e o dharma perfeito é a verdade.
O princípio dinâmico do círculo, celebrado pelas rondas das danças de todas as culturas “primitivas”, possui o seu equivalente estático no princípio da esfera, cuja redondeza é para a forma o que a circularidade é para o movimento. O nosso globo terrestre é uma esfera que pertence, por sua vez, a uma galáxia que espirala em torno – e em afastamento – de um centro invisível do qual é a projecção esférica.
De uma relevância ainda mais imediata, é o facto de o homem estar colocado sob a abóbada celeste e poder contemplar, a partir de todo e qualquer ponto, o mesmo nascer e pôr-do-sol, os infindáveis ciclos da lua, e a ronda processional das constelações estelares. Ele testemunha o eterno retorno das estações ao mesmo tempo que sente, na sua própria carne, a herança destes ciclos com a passagem da juventude à maturidade, passagem essa que marca as etapas processionais da sua estadia mortal, na qual os extremos se tocam, pois a idade avançada pode ser, em termos espirituais, uma segunda juventude. Não será então verdade que tudo o que o homem vê e tudo o que ele experiencia segue, fundamentalmente, ritmos perenes e imutáveis? E falar de ritmo é falar de repetição. E o que é a repetição senão retorno e circularidade?
Esta evidência é plena de significado, pudesse o homem simplesmente parar e ponderar as suas implicações. Observar que a Realidade pode ser compreendida geometricamente como um círculo, ou uma esfera, prova, para mais, a bondade da substância universal pois, como reconheceu Platão, a redondeza é a forma concreta do bem, do agradável e do amável. O desespero não usurpa a serenidade daquele que compreende isto no seu coração.
Também a magnificente migração anual de diversas criaturas testemunha o pulsar de um grandioso ser que permeia o majestoso silêncio da natureza. O colibri, a borboleta monarca, o salmão, que regressam aos seus locais de acasalamento ou desova, não precisam de “sistemas de radar”, pois são os emissários de centros/corações: viajam com o fluxo e o refluxo, a projecção e o retorno desses centros dos quais as suas viagens traçam as configurações das artérias que se dispõem através de raios invisíveis mas intrinsecamente vivos. Para o contemplativo, o respirar e o pulsar do Céu está onde murmure uma brisa em ramos frondosos, salpique a água em riachos serpenteantes ou onde um grilo cante. E o centro divino está sempre onde se eleva uma montanha, no desabrochar de uma flor e no sorriso de uma donzela. E ele está sobretudo onde se encontra um homem em oração.
Fonte:
Mark Perry traduzido por Miguel Conceição