Caretos, bailinho, Pai Velho, Morte e Diabo. Assim se vive o Entrudo tradicional em Portugal. Prepara-se a Quaresma, dá-se as boas-vindas à Primavera, parte-se à conquista dos corações das raparigas. Brincadeiras intemporais que, por estes dias, reavivam a chama de um Entrudo que permanece imune aos plásticos dos martelinhos, aos corsos apoteóticos e aos calores tropicais.
Rapazes de Lazarim
Sois todos uma canalha
Com o fumo do tabaco
No corpo tudo vos falha
O Inverno aproxima-se do final. A Primavera dá os primeiros sinais. As árvores ganham flor e, no ar, desenha-se a dança dos bandos de andorinhas. Uma renovação de vida que o Entrudo comemora. Rituais entre o pagão e o religioso dão as boas-vindas a uma nova estação. Manifestações que assentam, provavelmente, em festividades primitivas associadas às festas de carácter orgíaco, como as bacanais, celebrações a Baco, deus do vinho, na Grécia antiga, ou as saturnais, festas em honra a Saturno, Deus da agricultura, na Roma antiga.
O Entrudo aparece como dias de excesso, de libertação, antes da Quaresma, período do calendário católico que pede abstinência. Enterra-se o Inverno, símbolo do Velho, guerreia-se o Verão com a Invernia. Daí os muitos enterros pelo País fora - «enterro do velho», ou o «enterro do galo», «enterro do Entrudo», «enterro do João», bem como o «enterro do bacalhau», o qual é, por vezes, afogado ou despedaçado a tiro. Sublinha-se, ainda, os combates Inverno/Verão, teatralizados com batalhas carnavalescas entre jovens floridos e figuras andrajosas, demoníacas.
Um Entrudo turbulento, agitado pelos chocalhos, demoníaco nas máscaras. Celebrações caóticas; «batalhas» entre sexos, grupos de rapazes contra grupos de raparigas, procurando queimar o boneco de palha do oponente, lançando versos insultuosos.
Momento para, também, provar a cozinha portuguesa. Preparam-se pratos à base de carne de porco. Prepara-se o espírito e o estômago para os 40 dias de abstinência à carne que se contarão até à Páscoa. A sátira é protagonista no Entrudo. Pula atrás de máscaras ou em letras compostas para o efeito, como acontece na ilha Terceira, Açores. Dias de crítica política e social de carácter regional e nacional.
Os caretos de Lagoa de Mira:
No tempo fica perdida a origem dos caretos da Lagoa de Mira. João Luís Pinho, responsável pelo grupo de caretos da vila do distrito de Coimbra, adianta que «as pessoas mais velhas, algumas com 90 anos de idade, lembram-se da presença dos caretos desde a infância e de históricas contadas pelos avós sobre estas figuras carnavalescas». É possível, no entanto, situar a sua existência há centenas de anos, porque existem registos fotográficos dos caretos de Lagoa de Mira com mais de cem anos. O mesmo responsável destaca pormenores curiosos desta tradição que no concelho de Mira está presente apenas na vila de Lagoa de Mira. «No concelho apenas na Lagoa há caretos. Esta é uma das curiosidades que temos vindo a estudar, mas ainda não há conclusões. Depois há as semelhanças com os caretos do noroeste do país, assim como também aqui parece haver uma ligação a rituais pagãos relacionados com a iniciação dos rapazes na idade adulta». Actualmente, são entre 20 e 30 os caretos da Lagoa de Mira que, apenas pelo Entrudo, saem à rua. De forma endiabrada, demoníaca vão-se metendo com as raparigas a quem o ritual dos caretos está interdito. Depois de as assustarem e agarrarem, os caretos tentam dar alguns mimos às meninas, «as que deixam, claro», brinca João Luís Pinho. O traje dos caretos da Lagoa de Mira distingue-se pelas cores garridas, com predominância do vermelho, e pelas máscaras, de onde sobressaem uns enormes chifres. A saia do careto é vermelha, «numa alusão ao pecado», a camisa branca, «símbolo de pureza», explica João Luís Pinho. Estes seres demoníacos fazem-se ainda acompanhar por chocalhos e campainhas que agitam endiabrados, aumentado o efeito diabólico que querem transmitir.
Os Caretos de Podence:
O Inverno frio e silencioso das terras transmontanas é quebrado com o Entrudo tradicional de Podence. Figuras demoníacas, com chocalhos pendurados na cintura, troando nas ruas empedradas da aldeia de Trás-os-Montes. São os caretos. Sempre homens. Os chocalhos batendo contra o corpo das mulheres. António Carneiro coordena o Grupo de Caretos de Podence e explica que «o ritual do chocalhar tem a ver com a fertilidade, é uma forma da gente nova chegar às mulheres». Já elas, se querem fugir às investidas dos endiabrados caretos, vestem-se de homem durante os dias do Entrudo. Os trajes dos caretos, um ritual entre o pagão e o religioso, são elaborados com colchas franjadas de lã ou de linho, em teares caseiros. As máscaras são de lata. António Carneiro conta que a origem desta tradição se perde no tempo e que depois de uma fase de ausência, durante o Estado Novo, em 1985 a constituição do Grupo de Caretos de Podence, retomou uma marca daquelas terras do Norte. «Os caretos são um cartaz turístico. A nossa aldeia tem 300, 400 habitantes e nos três dias de Entrudo em 2009 recebemos perto de sete mil visitantes». O grupo tem um núcleo efectivo de 20 homens, que ao longo do ano aceitam convites para animar festas, mas nos dias que antecedem a entrada na quaresma, reúnem-se em Podence 40 a 50 caretos.
Pai Velho em Terras de Lindoso
No domingo Gordo e na terça-feira, dia do Entrudo, em Terras de Lindoso, concelho de Ponte da Barca, o busto de madeira, o Pai Velho, é transportado num carro de bois, seguido de outro carro de bois, o carro das ervas. Os animais ornamentados com ramos de flores em cada chifre e com campainhas a tilintar deslocam-se até à eira comunitária. Na frente do cortejo vai a lavadeira que se enfeita com os cordões de ouro dos avós. Atrás seguem as rusgas de concertinas, bombos, ferrinhos e castanholas e a que não faltam as máscaras dos mais foliões. Na terça-feira, pela meia-noite, queima-se o Pai Velho. Este é um ritual colectivo onde arde um boneco de palha enquanto se lê o seu testamento. O domingo Gordo é ainda acompanhado pela gastronomia, servindo-se um tradicional cozido.
Lazarim com comadres e compadres
Em Lazarim, no concelho de Lamego, a tradição do Entrudo ainda é o que era. Sinónimo de folguedo e máscaras, a época celebra-se entre comadres e compadres que envergam máscaras típicas feitas artesanalmente em madeira de amieiro.
As máscaras são sempre diferentes de ano para ano e cabe aos seus portadores idealizarem as vestimentas que as acompanham.
O Entrudo é precedido pela Semana dos Compadres e das Comadres, as duas associações que tentam reunir fundos para os festejos e que vão preparando, em completo segredo, as quadras destrutivas do testamento que será lido na Terça-feira Gorda. No Domingo Gordo à tarde começa a grande folia. Os caretos vão chegando, cada um com o seu disfarce. Tocam as bandas, reúnem-se os carros alegóricos, dançam os ranchos folclóricos, desfilam os gigantones. E na Terça-feira Gorda as ruas de Lazarim enchem-se de gente para ver passar o desfile das máscaras e participar na folia. Ao início da tarde os mascarados começam a aparecer em pequenos grupos misturando-se com a multidão. A alegria, emerge, assim, nas ruas de Lazarim.
Depois do desfile os compadres e as comadres iniciam uma luta verbal de rimas onde não falta a malandrice e as tiradas picantes. As pessoas aglomeram-se debaixo de uma varanda para ouvir a leitura do testamento. A rapariga lê o testamento do Compadre e o rapaz o da Comadre. A rivalidade entre sexos serve como principal pano de fundo à libertinagem linguística. Terminado o «ajuste de contas» e imolados os bonecos, prossegue o cortejo até ao local onde o fogueteiro dá por encerrado o Entrudo. Ao entardecer realiza-se o concurso de máscaras e atribuem-se os prémios aos artesãos mais talentosos. Depois é altura de saborear o tradicional caldo de farinha, a feijoada e o vinho.
O Dia da Morte e dos Diabos em Vinhais
O Entrudo em Vinhais,Trás-os-Montes, assume «características únicas no país» estendendo-se até ao primeiro dia da Quaresma, a Quarta-feira de Cinzas. A Festa atrai elevado número de jovens que, de forma espontânea, ajudam a manter a tradição.
O vereador da Cultura da Câmara Municipal de Vinhais, Roberto Afonso, explica ao Café Portugal que, além do tradicional desfile de Entrudo, que acontece na terça-feira, e onde marca presença o corpo do Rei Momo que, depois de transportado no esquife e acompanhado pelas numerosas viúvas que soltam gritos de tristeza pela sua morte, é queimado no Largo do Arrabalde depois de lido o seu testamento (uma espécie de sátira em jeito de crítica social e que ao longo dos anos se tem mantido).
Um dos momentos mais peculiares do Entrudo de Vinhais começa exactamente à meia-noite de terça para quarta-feira quando, «surgindo de esquinas e recantos, os temidos Diabos (figuras cuja indumentária é composta por fatos de flanela vermelha) ameaçam e assustam quem teve coragem para continuar em folia própria da data mas que, dita a tradição, devem terminar às doze badaladas da meia-noite, momento em que se entra na Quaresma (período reservado à penitencia)».
Durante a Quarta-feira de Cinzas, o ambiente em Vinhais é fortemente marcado pela presença de dezenas de Diabos à solta pelas ruas, sequiosos de almas pecadoras, recriando, anualmente, um ritual ancestral denominado pelo povo como o Dia da Morte e dos Diabos.
(...)
Um dos momentos mais peculiares do Entrudo de Vinhais começa exactamente à meia-noite de terça para quarta-feira quando, «surgindo de esquinas e recantos, os temidos Diabos (figuras cuja indumentária é composta por fatos de flanela vermelha) ameaçam e assustam quem teve coragem para continuar em folia própria da data mas que, dita a tradição, devem terminar às doze badaladas da meia-noite, momento em que se entra na Quaresma (período reservado à penitencia)».
Durante a Quarta-feira de Cinzas, o ambiente em Vinhais é fortemente marcado pela presença de dezenas de Diabos à solta pelas ruas, sequiosos de almas pecadoras, recriando, anualmente, um ritual ancestral denominado pelo povo como o Dia da Morte e dos Diabos.
(...)
Fonte -
Ana Clara e Sara Pelicano | sexta-feira, 4 de Março de 2011