20 fevereiro 2012

Ainda sobre o "Intrudo"






"A face do caos: ritos de subversão na tradição portuguesa" de Aurélio Lopes

O modelo entrópico da temporalidade arcaica confere à existência, uma necessidade de recriação ritual, condição única para uma indispensável regeneração do tempo e da vida.
Inspirando-se no crescimento e decrescimento do domínio diurno do sol e no apogeu e declínio lunar, paradigmas de uma degeneração cíclica, ou ainda na sazonalidade vegetativa, feita de nascimento, crescimento, maturação e morte, sempre as concepções cosmogónicas do Homem foram entendidas como modelo da recriação periódica do cosmos.
Mudança que exige uma imersão cíclica no caos, no limbo primevo! Condição purificadora indispensável para um novo começo. Começo gerado, em sentido estrito, a partir do nada absoluto! A anulação ritual, cíclica e radical, gera assim um novo mundo e uma nova existência, numa dimensão perpétua do devir.

Mas a perfeição do começo exige a destruição do velho. A transmutação exige a dissolução das formas existentes, por imersão no caos social e cultural. Orgias e subversões, saturnais e bacanais, destruições da ordem e desregramentos sociais. Em qualquer dos casos, tanto no plano cósmico, como vegetal ou humano, trata-se de um retorno à unidade primordial.
Destruição inevitável que é também irreversível! Destruição que não admite reparação, que não permite qualquer tipo de reconstituição mas, só e apenas, uma efectiva e completa recriação! Um novo mundo torna-se possível apenas através de um regresso às origens, aos primórdios, que o mito consagra e o rito permite.

Em termos sociais tais práticas constituem, nas sociedades tradicionais, como que ritualizadas válvulas de escape, atenuadoras das tensões anualmente acumuladas. Particularmente importantes em sociedade especialmente conservadoras e disciplinadas.

As personagens mascaradas que durante todo o ciclo natalício impregnam de irreverência e exotismo as tradições do nordeste transmontano, constituem uma das mais arreigadas persistências pagãs ligadas a este complexo simbólico de transição, subversivo e fecundante. As máscaras de que muitos são portadores simbolizam a transmutação, realçada pelo próprio travestismo de que dão mostra e pelas atitudes de desacato e irreverência de que dão prova.
As acções destas insólitas personagens desenvolviam-se entre nós em tempos idos por todo o nordeste durante o período anual em que se celebra a morte do Sol e da natureza, de que o ciclo natalício herdou atributos. Gritos, alaridos, roubos rituais, invasão de propriedades, combates simulados, atitudes licenciosas, seduções de moçoilas, constituem paradigmas de comportamentos subversivos.

O período ante-quaresmal do "Intrudo" congregou, como não podia deixar de ser, grande parte destas práticas de transversão e transgressão. Mascarados, "ensaiados", "farapões" e "caretos", proliferavam em tempos idos um pouco por toda a parte. Em Podence, concelho de Bragança, bem como nas áreas territoriais dos concelhos de Lamego e Tarouca, por exemplo, os mesmos chegaram até aos nossos dias, mantendo singulares caracteres tradicionais.

Do ciclo solsticial do inverno podem-se configurar dois modelos de alguma forma distintos, ambos nordestinos: os "velhos" e "velhas", "carochos" e "farandulos" que por terras de Miranda, Mogadouro e Freixo de Espada à Cinta dominam, são personagens bizarras e terríficas, portadoras de máscaras demoníacas e adoptando nos gestos obscenos, nos gritos dilacerantes e na tradicional agressividade, o estereotipo mítico do caos, pai da desordem e da inversão.
Já nos concelhos de Bragança e Vinhais proliferam grupos de mascarados envergando fatos similares, multicores, com grande capuzes, máscaras de lata ou madeira, chocalhos a tiracolo e que azucrinam no período do Natal as pessoas, gritando, saltando, roubando e criticando asperamente os desvios locais de comportamento. São as "festas (ditas) dos rapazes", também chamadas "dos caretos" e nalguns casos apenas, e significativamente, "festas de Natal".
De comum têm as atitudes subversivas e irreverências várias como roubos e assédios às raparigas, as barulheiras que provocam e invasões de propriedades que desencadeiam bem, ainda, como as máscaras de que todos são portadores. A temporalidade natalícia, ainda hoje persistente, bem como a participação exclusiva dos homens, principalmente dos rapazes casadoiros, constitui igualmente vertente que os assemelha.

Grosso modo, as personificações que o cristianismo tornou diabólicas, exprimem-se especialmente nas máscaras fecundantes e demoníacas e nas atitudes de desordem que todos partilham. São os "diabos" que não pisam o terreno sagrado da Igreja nem frequentam a missa enquanto mascarados.
O seu território é o domínio do caos; orgiástico, excessivo e desordeiro!


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