"Pink Moon" - Jackie Morris |
(versão brasileira)
Houve
um tempo, que passou para sempre e que irá logo estar de volta, em
que um dia corre atrás do outro de céus brancos, neve branca... e
todos os minúsculos pontinhos escuros ao longe são pessoas, cães,
ou ursos.
Nesse
lugar, nada viceja gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas
se acostumaram a trazer consigo seus parkas, mamleks e botas, já de
propósito. Nesse lugar, as palavras se congelam ao ar livre, e
frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios de quem fala e
descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que foi
dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha
Annuluk, a avó, a velha feiticeira que é a própria Terra. E foi
nessa terra que vivia um homem... um homem tão solitário que, com o
passar dos anos, as lágrimas haviam aberto fundos abismos no seu
rosto.
Ele
tentava sorrir e ser feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia
bem. No entanto, sentia falta de companhia. Às vezes, lá nos bancos
de areia, no seu caiaque, quando uma foca se aproximava, ele se
lembrava de antigas histórias sobre como as focas haviam um dia sido
seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos
seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas
expressões sábias, selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia
nessas ocasiões uma solidão tão profunda que as lágrimas
escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.
Uma
noite ele caçou até depois de escurecer, mas sem conseguir nada.
Quando a lua subiu no céu e as banquisas de gelo começaram a
reluzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no mar e seu olhar
aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos sobre a
velha rocha.
Ele
remou lentamente e com os remos bem fundos para se aproximar, e lá
no alto da rocha imponente dançava um pequeno grupo de mulheres,
nuas como no primeiro dia em que se deitaram sobre o ventre da mãe.
Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano a não ser
na lembrança — e ele ficou ali olhando. As mulheres pareciam seres
feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com gotículas prateadas
como as do salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e
graciosos.
Elas
eram tão lindas que o homem ficou sentado, atordoado, no barco, e a
água nele batia, levando-o cada vez mais para junto da rocha. Ele
ouvia o riso magnífico das mulheres... pelo menos elas pareciam rir,
ou seria a água que ria às margens da rocha? O homem estava
confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a
solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e, quase sem
pensar, como se fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou
uma das peles de foca ali jogadas. Ele se escondeu por trás de uma
saliência rochosa e ocultou a pele de foca dentro do seu qutnquq,
parka.
Logo,
uma das mulheres gritou numa voz que era a mais linda que ele já
ouvira... como as baleias chamando na madrugada... ou não, talvez
fosse mais parecida com os lobinhos recém-nascidos caindo aos tombos
na primavera... ou então, não, era algo melhor do que isso, mas não
fazia diferença porque... o que as mulheres estavam fazendo agora?
Ora,
elas estavam vestindo suas peles de foca, e uma a uma as
mulheres-focas deslizavam para o mar, gritando e ganindo de
felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas procurava por
toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar
nenhum. O homem sentiu-se estimulado — pelo quê, ele não sabia.
Ele saiu de trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
— Mulher... case-se... comigo. Sou um... homem... sozinho.
— Mulher... case-se... comigo. Sou um... homem... sozinho.
—
Ah
— respondeu ela. — Eu não posso me casar, porque sou de outra
natureza, pertenço aos que vivem temeqvanek, lá embaixo.
— Case-se... comigo — insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.
— Case-se... comigo — insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.
A
jovem mulher-foca ficou olhando muito tempo o rosto do homem com
olhos que, se não fossem suas origens verdadeiras, pareciam humanos.
—
Irei
com você — disse ela, relutante. — Dentro de sete verões,
tomaremos a decisão.
E
assim, com o tempo, tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk. A
criança era ágil e gorda. No inverno, a mãe contava a Ooruk
histórias de seres que viviam no fundo do mar enquanto o pai
esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a mãe
levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da
ventilação as nuvens e todas as suas formas. Só que, em vez de
falar das formas do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias
da vaca-marinha, da baleia, da foca e do salmão... pois eram essas
as criaturas que ela conhecia.
No
entanto, à medida que o tempo foi passando, sua pele começou a
ressecar. A princípio, ela escamou e depois passou a rachar. A pele
das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo da sua cabeça, a
cair no chão. Ela se tornou naluaq, do branco mais pálido. Suas
formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu
caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse,
iam ficando mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear
porque sua vista estava escurecida.
E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.
E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.
—
Você
escondeu minha pele de foca há sete
longos anos,
e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que me seja devolvido
aquilo de que sou feita —gritou a mulher-foca.
—
E
você, mulher — vociferou o marido. — Você me deixará se eu lhe
der a pele.
—
Não
sei o que eu faria. Só sei que preciso daquilo a que pertenço.
—
E
você me deixaria sem mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.
Com
essas palavras, o marido afastou com violência a pele da porta e
desapareceu noite adentro.
O
menino adorava a mãe. Ele tinha medo de perdê-la e, por isso,
chorou até dormir... só para ser acordado pelo vento. Um vento
estranho... que parecia chamá-lo.
—
Oooruk,
Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluks até a metade. Ao ouvir seu nome chamado insistentemente, ele saiu correndo na noite estrelada.
—
Ooooooorukkk.
O menino correu até o penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme. Seus bigodes lhe caíam até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
— Ooooooorukkk.
O
menino foi descendo o penhasco de qualquer jeito e bem junto à base
tropeçou numa pedra, não, numa trouxa, que rolou de uma fenda na
rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto como milhares de
açoites de gelo.
—
Ooooooorukkk.
O
menino abriu a trouxa e a sacudiu: era a pele de foca da sua mãe.
Ah, ele sentia seu perfume na pele inteira. E, enquanto mergulhava o
rosto na pele de foca e respirava seu cheiro, a alma da mãe
penetrava nele como um súbito vento de verão...
—
Ah
— exclamou ele com alegria e dor, e levou novamente a pele ao
rosto.
Mais
uma vez, a alma da mãe passou pela dele. — Ah!!! — gritou ele de
novo, porque estava sendo impregnado pelo amor infinito da mãe.
E
a velha foca prateada ao longe mergulhou lentamente para debaixo
d'água.
O
menino escalou o penhasco, voltou correndo para casa com a pele de
foca voando atrás dele e se jogou para dentro de casa. Sua mãe
contemplou o menino e a pele e fechou os olhos, cheia de gratidão
pelo fato de os dois estarem em segurança. Ela começou a vestir sua
pele de foca.
—
Ah,
mãe, não! — gritou o menino. Ela apanhou o menino, ajeitou-o
debaixo do braço e saiu correndo aos trambolhões na direção do
mar revolto.
—
Ai,
mamãe, não me abandone! — implorava Ooruk. E logo dava para se
ver que ela queria ficar com o filho, queria mesmo, mas alguma coisa
a chamava, algo que era mais velho do que ele, mais velho do que ela,
mais antigo que o próprio tempo.
—
Ah,
mamãe, não, não, não — choramingou a criança. Ela se voltou
para ele com uma expressão de profundo amor nos olhos. Segurou o
rosto do menino nas mãos e soprou para dentro dos pulmões do menino
seu doce alento, uma vez, duas, três vezes. Depois, com o menino
debaixo do braço como uma carga preciosa, ela mergulhou bem fundo no
mar e cada vez mais fundo. A mulher-foca e seu filho não tinham
dificuldade para respirar debaixo d'água. Eles nadaram muito para o
fundo até que entraram no abrigo subaquático das focas, onde todos
os tipos de criaturas estavam jantando e cantando, dançando e
conversando, e a enorme foca prateada que havia chamado Ooruk de
dentro do mar da noite abraçou o menino e o chamou de neto.
— Como você está se saindo lá em cima, minha filha? — perguntou a grande foca prateada.
— Como você está se saindo lá em cima, minha filha? — perguntou a grande foca prateada.
A
mulher-foca afastou o olhar e respondeu:
—
Magoei
um ser humano... um homem que deu tudo para que eu ficasse com ele.
Mas não posso voltar para ele, porque, se o fizer, estarei me
transformando em prisioneira.
— E o menino? — perguntou a velha foca. — Meu neto? — Ele estava tão orgulhoso que sua voz tremia.
—
Ele
tem de voltar, meu pai. Ele não pode ficar aqui. Ainda não chegou o
seu tempo de ficar conosco. — Ela chorou. E juntos eles choraram.
E
assim passaram-se alguns dias e noites, exatamente sete, período
durante o qual voltou o brilho aos cabelos e aos olhos da
mulher-foca. Ela adquiriu uma bela cor escura, sua visão se
recuperou, seu corpo voltou às formas arredondadas, e ela nadava com
agilidade. Chegou, porém, a hora de devolver o menino à terra.
Nessa noite, o avô-foca e a bela mãe do menino nadaram com a
criança entre eles. Vieram subindo, subindo de volta ao mundo da
superfície. Ali eles depositaram Ooruk delicadamente no litoral
pedregoso ao luar.
—Estou
sempre com você — afiançou-lhe sua mãe. — Basta que você
toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu,
(faca), minhas esculturas de pedra de focas e lontras, e eu soprarei
nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas
canções.
A
velha foca prateada e sua filha beijaram o menino muitas vezes.
Afinal, elas se afastaram, saíram nadando mar adentro e, com um
último olhar para o menino, desapareceram debaixo d'água. E Ooruk,
como ainda não era a sua hora, ficou.
Com
o passar do tempo, ele cresceu e se tornou um famoso tocador de
tambor, cantor e inventor de histórias. Dizia-se que tudo isso
decorria do fato de ele, quando menino, ter sobrevivido a ser
carregado para o mar pelos enormes espíritos das focas. Agora, nas
névoas cinzentas das manhãs, ele às vezes ainda pode ser visto,
com seu caiaque atracado, ajoelhado numa certa rocha no mar,
parecendo falar com uma certa foca fêmea que freqüentemente se
aproxima da orla. Embora muitos tenham tentado caçá-la, sempre
fracassaram. Ela é conhecida como Tanqigcaq, a brilhante, a sagrada,
e dizem que, apesar de ser foca, seus olhos são capazes de retratar
expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas.
Germano Ovani |
De Clarissa Pinkolas Estés - Mulheres que correm com os lobos