Hoje é
Śivarātri, dia dedicado a Śiva.
Por
Glória Arieira
No Śiva Purāṇa é dito que, em todos os meses, a noite anterior ao dia da lua nova é dedicada a Śiva. Essa noite é chamada Śivarātri, a noite (rātri) de Śiva. Uma vez ao ano, no mês de fevereiro ou março, chamado magha, há um dia e uma noite inteiros dedicados a Śiva, chamados Mahaśivarātri. Esse dia é de orações, rituais, ascetismo e práticas espirituais. É quando novos sannyasis, renunciantes, são iniciados; pessoas que desse momento em diante se propõem a viver somente suas buscas espirituais. Na Índia, em todos os templos de Śiva, há uma grande comemoração nesse dia.
Śiva, na tríade védica, é o Destruidor, o Transformador, ao lado de Brahmā, o Criador, e Viṣṇu, o Preservador. Não encontramos templos a Brahmā, pois todo o mundo é seu templo, e o respeito à criação é o oferecimento de orações a Ele. Nada temos a pedir, pois a criação aqui está. Viṣṇu, o preservador da criação, é casado com Lakṣmī, a deusa da riqueza. Os templos dedicados a eles, ou a uma das manifestações de Viṣṇu, como Rāma ou Kṛṣṇa, são de grande beleza e muito populares. A ele é pedido bem-estar, conforto, riqueza e bens materiais.
Śiva
é o asceta. Ele dissolve a criação para o aparecimento de outra.
Ele remove a ignorância para dar lugar ao conhecimento. Ele ajuda os
ascetas, os yogis e os estudantes de Vedānta no seu caminho
espiritual. Ele domina todas as disciplinas físicas e mentais.
Frequentemente encontramos imagens de Śiva em profunda meditação.
Muitos se espantam ao vê-lo envolto em cobras e decorado com cinzas.
A cobra simboliza o ego, o ahaṅkara, que para ele não é um
problema. Para ele, o ego é um alaṅkara, uma decoração,
pois ele tem o conhecimento do Eu real, ilimitado. As cinzas
representam a queima da ignorância e da ilusão. Os cabelos são
compridos como os de um asceta, com um coque no alto da cabeça
aparando o rio Ganges, que vem com grande força destruidora, para
fazer com que esse mesmo rio saia mais tranquilo para abençoar os
seres na Terra. Ao seu lado, em uma de suas mãos, o tridente,
triśūla, símbolo do renunciante, e na outra o Damaru,
pequeno tambor de onde partem os primeiros sons da criação.
Śiva
é Īśvara, também chamado Maheśvara e Jagadīśvara
- o Grande Senhor e o Senhor do Universo. Īśvara é o Todo,
toda a criação e a causa desta. Por isso Śiva também é
simbolizado por um liṅgam. Liṅgam, em sânscrito,
significa alguma coisa com a ajuda da qual você vê outra coisa. É
uma indicação. Śivaliṅgam é uma forma sem forma
específica. Uma forma que inclui todas as formas. É o símbolo do
Todo, que é Śiva.
No
dia de Mahaśivarātri os devotos passam o dia em atividades
religiosas e espirituais. Ficam em silêncio, jejum e orações, e no
templo há, durante todo o dia, até a meia-noite, uma corrente
contínua de repetição do mantra Oṁ namah Śivaya (Oṁ
saudações a Śiva). Durante o dia vários rituais são feitos. À
noite é feito o arati (ritual simples com fogo e cânticos) e
é distribuído prasāda (alguma coisa, principalmente
comestível, que é oferecida no templo e depois dada a todos os que
participam).
Durante todo esse dia e essa noite, Śiva, que significa auspiciosidade, é lembrado. Não só ele, mas o que ele representa: a dedicação total à chamada vida espiritual e à busca do conhecimento; a destruição completa da ignorância e quaisquer obstáculos que possam existir; a dissolução do devoto no altar da devoção, na chama do conhecimento da identidade da natureza de ambos. O devoto de Śiva alcança o bem absoluto que é ele mesmo.
Shiva
é casado com Parvati, que representa Prakriti, a matéria. Isso
mostra que o poder de destruição só pode se manifestar quando
associado a algo perecível.
Como destruidor da ignorância (avidya), Shiva é representado meditando nas neves do Monte Kailasa, do Himalaia. Sua postura simboliza a serenidade, a disciplina (sádhana) e o comando do corpo, dos órgãos de percepção (os sentidos) e da mente. A brancura da neve representa a mente sátvica, purificada – nem deprimida (tamásica), nem agitada (rajásica) – o que é necessário para se poder meditar.
Shiva representa não só o mais alto estado de perfeição humana (a plenitude da Sabedoria), como, também, os meios para alcançá-lo. Seus olhos estão entreabertos, mostrando que sua mente está absorta no Ser e seu corpo se relaciona com o mundo (completamente fechados indicariam total desligamento, e bem abertos, completo envolvimento com o mundo).
O estado meditativo também é simbólico. A meditação (dhyána) é a última porta para a Auto-realização. Para obtê-la, é preciso meditar. E para poder meditar, é necessário uma mente pura. Shiva nos mostra que para purificar a mente é preciso ser um yogi, isto é, agir com total entrega dos frutos das ações ao Criador (Karma Yoga), neutralizando, assim, apegos (raga) e aversões (dvesha). Para ajudar nessa luta contra os apegos (ragas) e desejos, Shiva carrega seu Trishula, ou Tridente, simbolizando não só a destruição do ego e seus três aspectos de desejos (físicos, emocionais e mentais/intelectuais), mas, também, a transcendência dos três mundos (Bhur (inferior), o físico; Bhuvah (intermediário), o astral; e Swaha (superior), o causal), dos três Gunas (Sattva, Rajas e Tamas) e dos três períodos de tempo (passado, presente e futuro).
O Kamandalu, ou pote d’água, representa a renúncia (vairagya), o ascetismo, o viver com o mínimo necessário. As Rudraksas – sementes usadas para fazer japamalas – simbolizam Japa, a disciplina da repetição, e o Damaru – pequeno tambor –, o som e o fenômeno da Criação, do qual fazem parte a manutenção e a destruição. A Lua que lhe enfeita a cabeça representa não só as tendências e as transformações, mas, também, a mente ou o ego, todos usados como adornos, isto é, já não atrapalhando. (...)
Shiva “possui” um terceiro olho, na vertical, cujo poder de visão vai além dos olhos mortais (“vê por outro ângulo”). A visão do ser humano se limita às suas percepções, emoções e pensamentos, mas, ao transcender as limitações do corpo, mente e intelecto, reconhece o seu Ser, indicado pela “abertura” do terceiro olho.
O sábio (rishi) é aquele que conquistou o seu ego, representado pela serpente que, agora, é apenas um “adorno” e, também, pela pele de tigre, que morreu de morte “natural” (no reconhecimento da sabedoria, a ignorância “naturalmente” morre), e na qual ele “senta”, pois o sábio não senta sobre o chão, mas, sim, sobre o corpo.
(...)
Nataraja
é Shiva em pose de dança. Na noite de Mahashivarátri, ele larga o
Trishula (Tridente) e dança tocando o Damaru (o pequeno tambor). A
noite simboliza a ignorância do Ser, e a dança, o êxtase da
Auto-realização, a aurora do Conhecimento. A Lua Cheia representa o
preenchimento, a realização, o final do caminho, e a Lua Nova, um
novo começo. Os últimos minutos da Lua Cheia representam esse
preenchimento, e a Lua Nova, o “começo” dessa vida de plenitude.
O Trishula é para destruir todos os obstáculos que nos “separam” do Ser e largá-lo mostra a nossa vitória. O Mahashivaratri celebra a vitória da Sabedoria sobre a ignorância do Ser e sobre o ego, e ajuda-nos a lembrar de Shiva e de tudo o que ele representa: a disciplina, a renúncia, a meditação, o esforço e a seriedade na busca espiritual. Englobando tudo isso, a destruição completa da ignorância (avidya), a dissolução do indivíduo no Total e a realização do SER.
Fontes: