28 fevereiro 2013

Maria Quaresma

Por Carlos Gomes e Maria Odete Nunes Madeira



Serração da Velha - Flávio Cruz

Teófilo Braga, no seu livro "O Povo Portuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradições" (vol.II), refere que a Quaresma é representada como uma entidade, e em meados desta época faz-se a Serração da Velha. O mesmo autor afirma que entre os árabes, os sete dias de solstício do inverno são chamados "os dias da Velha", perseguida pelo Maio moço ou o verão, tal como Ernesto Veiga de Oliveira nos diz que “O nome da velha aparece … numa expressão meteorológica, que … designa um período que vai dos fins de Fevereiro aos princípios de Março… e que se encontra pela primeira vez em escritores árabes do século XIII, que lhe atribuem uma origem grega.” (1)

Em Portugal as manifestações da expulsão do inverno e o saudar da Primavera têm também a sua representação através da Serração da Velha - renascimento da natureza e o reinício de um novo ciclo da vida. Carlos Gomes escreve:
"(...) Ao começo dos tempos está associada a acção criadora dos deuses. Como tal, é este considerado o tempo sagrado em relação ao qual o Homem, através do rito, procura celebrar o gesto divino e primordial e participar na sua acção criadora. Consequentemente, ao festejamos a chegada da Primavera, nomeadamente a Serração da Velha, asseguramos através de um ritual mágico a continuidade do seu gesto criador e o perpétuo renascimento da vida e da natureza, quer o mesmo seja simbolizado no ovo pascal ou na Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo".

Ao observar o ressurgimento constante da natureza, a antiga crença associava a morte à vida num ciclo de perpétuo renascimento. A morte jamais representava o fim da vida mas antes um processo de regeneração indispensável ao nascimento de uma vida nova. Por conseguinte, a Serração da Velha anuncia a chegada da Primavera e o renascimento da vida vegetal, o desabrochar das flores e o esplendor do Sol cujos raios já nos deslumbram, por entre as derradeiras chuvas do Inverno, com a formação na esfera celeste do colorido “Arco da Velha”.

Sendo assim, a velha estava conotada com a morte, com as trevas da noite, o frio e as agruras do inverno; ao expulsá-la a meio da Quaresma o povo abria o caminho para a vinda da primavera, para a chegada da luz, do calor que trazem alegria e desenvolvem a vegetação, que fecundam e procriam. É ainda neste sentido que Adolfo Coelho nos diz que a Serração da Velha, o Enterro do Bacalhau e os Judas de Sábado de Aleluia mais não são do que a expulsão da morte, do longo período de inverno letárgico e redutor, ideia que Alberto Pimentel também defende quando afirma que “O costume da Serração da Velha parece conservar a tradição mítica da expulsão do inverno pela sua personificação numaVelha…” (...)

Aurélio Lopes, mais recentemente, acrescenta que “O escuro e famélico inverno, tempo de fome e frio, personalizar-se-á assim na Quaresma que, pelo seu carácter de abstinência, torna ainda mais austero um tempo pela austeridade já marcado.”[6] Não esqueçamos que o dia assinalado pelo povo para praticar este acto de Serração da Velha foi a noite da quarta-feira da terceira semana da Quaresma, isto é, mais ao menos a meio de um período de quarenta longos dias que a Igreja consagrou à penitência, ao jejum, ao sacrifício, à mortificação. As próprias representações artísticas da Quaresma apresentavam, regra geral, uma senhora trajando de negro, em sinal de luto profundo e era “…tomada por uma velha pálida, magra e seca tal qual um peixe.”

Seja qual for a sua origem, a Serração da Velha marcou, durante longos anos, a cultura tradicional do povo português. De norte a sul do país, a chinfrineira, o barulho ensurdecedor, os chistes, a crítica social, o ajuste de contas juntamente com o cortiço, o serrote, o funil, o chifre, as sarroncas, as latas, a gaita de foles, e ainda a velha, os cortejos, os palanques destinados a ser o  cadafalso da dita, os testamenteiros, as velhas personificadas em bonecas de palha deitadas em esquifes ou espetadas em paus, … imperavam nesta noite.



Fontes: