Serração da Velha - Flávio Cruz |
Teófilo Braga, no seu livro "O Povo Portuguez nos seus
Costumes, Crenças e Tradições" (vol.II), refere que a
Quaresma é representada como uma entidade, e em meados desta época
faz-se a Serração da Velha. O mesmo autor afirma que entre os
árabes, os sete dias de solstício do inverno são chamados "os
dias da Velha", perseguida pelo Maio moço ou o verão, tal como
Ernesto Veiga de Oliveira nos diz que “O nome da velha aparece …
numa expressão meteorológica, que … designa um período que vai
dos fins de Fevereiro aos princípios de Março… e que se
encontra pela primeira vez em escritores árabes do século XIII, que
lhe atribuem uma origem grega.” (1)
Em
Portugal as manifestações da expulsão do inverno e o saudar da
Primavera têm também a sua representação através da Serração
da Velha - renascimento da natureza e o reinício de um novo ciclo da
vida. Carlos Gomes escreve:
"(...)
Ao começo dos tempos está associada a acção criadora dos deuses.
Como tal, é este considerado o tempo sagrado em relação ao qual o
Homem, através do rito, procura celebrar o gesto divino e primordial
e participar na sua acção criadora. Consequentemente, ao festejamos
a chegada da Primavera, nomeadamente a Serração da Velha,
asseguramos através de um ritual mágico a continuidade do seu gesto
criador e o perpétuo renascimento da vida e da natureza, quer o
mesmo seja simbolizado no ovo pascal ou na Ressurreição de Nosso
Senhor Jesus Cristo".
Ao
observar o ressurgimento constante da natureza, a antiga crença
associava a morte à vida num ciclo de perpétuo renascimento. A
morte jamais representava o fim da vida mas antes um processo de
regeneração indispensável ao nascimento de uma vida nova. Por
conseguinte, a Serração da Velha anuncia a chegada da
Primavera e o renascimento da vida vegetal, o desabrochar das flores
e o esplendor do Sol cujos raios já nos deslumbram, por entre as
derradeiras chuvas do Inverno, com a formação na esfera celeste do
colorido “Arco da Velha”.
Sendo
assim, a velha estava conotada com a morte, com as trevas da noite, o
frio e as agruras do inverno; ao expulsá-la a meio da Quaresma o
povo abria o caminho para a vinda da primavera, para a chegada da
luz, do calor que trazem alegria e desenvolvem a vegetação, que
fecundam e procriam. É ainda neste sentido que Adolfo Coelho nos diz
que a Serração da Velha, o Enterro do Bacalhau e os Judas de Sábado
de Aleluia mais não são do que a expulsão da morte, do longo
período de inverno letárgico e redutor, ideia que Alberto Pimentel
também defende quando afirma que “O costume da Serração da Velha
parece conservar a tradição mítica da expulsão do inverno pela
sua personificação numaVelha…” (...)
Aurélio
Lopes, mais recentemente, acrescenta que “O escuro e famélico
inverno, tempo de fome e frio, personalizar-se-á assim na Quaresma
que, pelo seu carácter de abstinência, torna ainda mais austero um
tempo pela austeridade já marcado.”[6] Não esqueçamos que o
dia assinalado pelo povo para praticar este acto de Serração da
Velha foi a noite da quarta-feira da terceira semana da Quaresma,
isto é, mais ao menos a meio de um período de quarenta longos dias
que a Igreja consagrou à penitência, ao jejum, ao sacrifício, à
mortificação. As próprias representações artísticas da Quaresma
apresentavam, regra geral, uma senhora trajando de negro, em sinal de
luto profundo e era “…tomada por uma velha pálida, magra e seca
tal qual um peixe.”
Seja
qual for a sua origem, a Serração da Velha marcou, durante longos
anos, a cultura tradicional do povo português. De norte a sul do
país, a chinfrineira, o barulho ensurdecedor, os chistes, a crítica
social, o ajuste de contas juntamente com o cortiço, o serrote, o
funil, o chifre, as sarroncas, as latas, a gaita de foles, e ainda a
velha, os cortejos, os palanques destinados a ser o cadafalso
da dita, os testamenteiros, as velhas personificadas em bonecas de
palha deitadas em esquifes ou espetadas em paus, … imperavam nesta
noite.
Fontes: