22 novembro 2012

Gloria em revelação



Uma aula de vida e sabedoria com a maior professora de Vedanta do Brasil



A leveza e a profundidade de Gloria Arieira são reveladas em cada momento que se passa ao seu lado. Descalça ou de sandálias, não se ouvem seus passos. Sua voz não é alta, mas tem força e clareza cristalina. E o melhor: quando fala, tudo parece forte e claro assim. Mas o que a fundadora do centro Vidya Mandir diz tem a ver com a sua prática? Ela explica: “O Vedanta é o estudo e o Yoga é o estilo de vida para atingir o autoconhecimento. Eles estão juntos”.


- Sabemos que as palestras a que assistiu do Swami Chinmayananda no Rio de Janeiro em 1973 foram decisivas para você estudar Vedanta na Índia. Por quê?

- Eu tinha acabado de fazer 20 anos e estava realmente buscando alguma coisa na vida que fizesse sentido, e nada me respondia o porquê. Alguns anos antes, nos Estados Unidos, um evento havia me marcado: conheci um mexicano, que me contou entusiasmado que sua vida estava quase realizada porque poderia viver seus três grandes desejos: morar nos EUA, conhecer o Brasil e ir à Alemanha. E eu nasci no Brasil, estava nos EUA e de passagem marcada para a Alemanha! E ainda muito longe de me sentir realizada! Mais do que pensar no que leva à realização, eu queria saber o que é a realização, o que significa sentir-se pleno. Nas religiões se fala de um Deus, de um criador, mas de uma maneira tão infantil. Faz sentido que exista uma causa para essa criação, mas que causa é essa? Um dia, morando em Petrópolis, dei de cara com a Bhagavadgita da Sociedade Teosófica, e tratava de coisas que eu nunca tinha ouvido falar, como liberação, sábio, plenitude. Eram palavras que estavam na minha mente e também ali naquele livro. Pensei: “Bom, alguém está falando a minha linguagem, mas que conhecimento é esse?”. Então, em setembro de 1973, por esses acasos da vida, o Swami Chinmayananda, a caminho da Argentina para encontrar duas pessoas, parou no Rio e fez duas palestras. E o que ele falou era exatamente o que eu estava buscando, o significado da vida, o preenchimento que é o entendimento da sua natureza essencial, de que não existe nada lá fora que vai preencher você, mas a descoberta de um eu livre de limitação, de que existe uma causa no Universo, mas é diferente do que se fala sobre Deus. O Universo não veio do Criador como algo de fora, mas é uma manifestação Dele, assim como o sonho é uma manifestação do indivíduo. O sonho faz parte de mim, eu sou o sonhador e o sonhado. Isso é uma visão completamente diferente e única. Saí dessa palestra sem entender tudo, mas sabendo que existe um conhecimento. Ele realmente transformou a minha vida nesse dia.


Busca intensa 
Sempre tive muitas oportunidades. Aos 6 anos saí pela primeira vez do Brasil. Meu pai era piloto, foi fazer um curso nos EUA, e lá fui eu. Depois, aos 17, voltei para lá, fiquei dois anos, e então pude viajar pela Europa por três meses. Viajei pelo Brasil todo, do Amazonas ao Sul. Conheci muita gente, mas ninguém que estava satisfeito, pleno. Minha vida estava fácil, mas eu tinha uma urgência de resolver a insatisfação por não entender o porquê das coisas e não conseguir relaxar. Nessa busca intensa, conheci de Hare Krishna a Zen Budismo, mas não me identifiquei. O máximo que vi eram pessoas tranquilas em práticas de meditação. Então, como muitos de nós, achei que seria um único caminho. Conheci um rapaz que também estava buscando isso, alimentação, Yoga... Resolvemos ir a um lugar afastado para viver isso. Tentamos Cabo Frio, mas era agitado. Decidimos ir à Terra do Fogo, na Argentina, e nos casamos. No caminho percebemos que o lugar não faria a menor diferença e voltamos a Petrópolis, pois lá tínhamos onde morar. Acordávamos às 5h da manhã para fazer pranayamas e meditação no alto da montanha. Aquilo trouxe uma certa paz, mas momentânea. Então decidimos ir até o Swami Chinmayananda. Ele havia dito algo muito bonito na palestra, que um buscador é como uma flor – precisa se abrir completamente –, mas se aberta à força, não terá perfume nem beleza. Precisa amadurecer no seu tempo, para que se abra com todo o seu potencial, com a ajuda de um jardineiro, o mestre. No final da palestra, fui perguntar (eu já falava inglês por ter morado nos EUA): “O senhor seria o meu jardineiro?”. Ele respondeu: “Se a planta não morrer, sim”. Com meu marido, fui ao encontro dele na Índia. Como o Swami dava palestras pelo mundo, quem dava aulas para um grupo de 55 pessoas lá no ashram era o Swami Dayananda, e ele realmente foi um mestre perfeito para mim. Explica com muita lógica e clareza. Foi um prazer passar quatro anos e meio lá estudando – enfim, a descoberta daquele conhecimento que eu procurava. Fui com muita sede e todas as respostas estavam ali, então foi um acalmar, um relaxar.


- Depois de quase 40 anos de estudo e prática em ensinar, existe alguma dúvida ou angústia em relação a essa busca?  
- (Sorri) Não, não existe. Existe um relaxamento e uma clareza em relação a isso tudo. 


- Qual seria o maior obstáculo para uma pessoa interessada no autoconhecimento e como superá-lo?
- O primeiro obstáculo é não discernir o que você está realmente buscando. Fora isso, um obstáculo é a prática de dispersão da mente, porque a nossa sociedade leva a nos distrair muito, e temos pouca paciência. Essa mente que se distrai e quer tudo rápido é um obstáculo para o momento presente. Temos de ter o exercício da paciência e viver o presente tal como ele é. Os obstáculos estão na mente. Na época em que comecei, esse conhecimento quase não era disponível. Agora é, mas não temos tempo nem espaço na mente para isso.


- Qual a relação entre os Vedas, o Vedanta e a prática de Yoga (asanas/posturas)? Onde o Yoga e o Vedanta se encontram?
- Yoga e Vedanta estão nos Vedas. O Yoga aparece nas Upanishads, mas não só como os oito membros de Patañjali, e mais como na Bhagavadgita, um estilo de vida que envolve várias práticas. O Vedanta é o estudo e o Yoga é o estilo de vida. Eles estão juntos. Ambos fazem parte da tradição védica, que é o corpo de conhecimento dos Vedas e de conhecimentos que nasceram dos Vedas, como Yoga, Ayurveda, dança e música. O estudo dos Vedas começa com uma análise chamada Purushartha nishcaya: o ser humano busca quatro coisas: prazer, segurança, ação correta (dharma) e liberação, plenitude (moksha). Antes de qualquer estudo, os Vedas fazem essa análise de qual é o objetivo principal na vida. Então, focando nele, que é a liberação, é necessário saber qual o meio para ela: o autoconhecimento nos textos de Vedanta e toda uma vida de Yoga, na forma de Karma Yoga, da relação com Ishvara (o Todo, Deus), da meditação. Tudo isso, Yoga e Vedanta, faz parte dos Vedas e do meio para atingir essa liberação final.


- Como uma pessoa que vive em sociedade, com tantas tarefas, é capaz de estudar Vedanta de forma adequada?
- O próprio ensinamento de Vedanta e a Gita em particular colocam dois estilos de vida em busca da liberação (de um sofrimento, de uma insatisfação constante): um estilo de vida do sannyasin (renunciante), em que a pessoa renuncia à sociedade – casa, filhos, trabalho – e vive isolada, estudando e meditando; e outro em que o karma yogi vive na sociedade, mas encaixa o estudo e o ensino também na sua vida com os filhos, o trabalho etc. A gente acha – e Arjuna na Gita também achava – que seria muito mais fácil a renúncia, porque você só se dedica ao estudo. Por exemplo, se quero ler um livro, acabo muito mais rápido se ficar só lendo do que se dividir a leitura com outras tarefas. Mas o estudo depende de uma maturidade emocional e afetiva, então renunciar a tudo e se dedicar só ao estudo requer que a pessoa tenha capacidade, senão é muito pior. Quantas pessoas param tudo para fazer sua tese de doutorado e não conseguem, enquanto outras concluem uma tese mesmo trabalhando e com filhos? Não é a quantidade de coisas que você faz que conta, mas a capacidade de se concentrar. O mais importante é gerenciar sua vida com disciplina e organização. O seu dia a dia e as exigências externas vão ensinando a gerenciar porque na vida tudo acontece ao mesmo tempo. Colocar o estudo no meio disso pode até ser mais eficaz, porque já vi pessoas que param tudo para estudar em um ashram e quando chegam lá, viram cozinheiros ou assistentes que ficam no computador, não conseguem estudar. Podemos achar que quem está no ashram chega mais rápido à liberação, mas ninguém chega à liberação, chega ao conhecimento de que já é liberado – não tem aonde chegar, tem o que compreender. Se você consegue gerenciar todas as suas tarefas com meditação e aulas, aí eu diria que é o melhor dos mundos, porque você tem oportunidade de ter mais maturidade e de adquirir o conhecimento.


- É comum o estudante de Vedanta depositar a sua condição de felicidade em um momento futuro em que alcançará moksha (libertação). O que dizer sobre isso?
- Isso é um dos obstáculos clássicos, todo mundo passa. É comum a gente projetar e se preocupar com o momento da liberação, porque assim como a liberação, temos outras buscas, como uma casa própria, um emprego seguro… Pensamos em que dia vamos alcançar esses objetivos, e tendemos a fazer isso com a liberação. Mas é um engano, pois a liberação não tem dia porque você já é liberado, então não tem um evento para acontecer, e sim um entendimento que leva um tempo para assimilar vários fatores. Por exemplo, alguém conta uma piada. Você não entende, mas os outros riem e você fica pensando em qual a graça, come e, no banho, aquilo vem à sua mente: “Ah, entendi!”. Nesse momento, você ri e relaxa. O processo de Vedanta é também uma questão de entender. Você precisa ouvir repetidamente até uma hora em que entende. Você não se transforma em um ser absoluto, você se entende assim, é por isso que tem algo como uma gargalhada, “Pô, como eu não vi isso antes?”.

- Como aplicar a visão do Vedanta em situações "cinza", isto é, nas quais não está clara a diferença entre o dharma e o adharma, o certo e o errado?
- O dharma tem dois significados:
• O que é o meu papel na vida e na sociedade. 
• Agir de acordo com os valores universais.
Mas esses valores não são absolutos. Por exemplo, ahimsa (não violência) é um grande valor, mas quando você precisa de uma cirurgia, submete-se ao corte e à dor deliberadamente. E isso acontece com outros valores, como contar a verdade. Por isso os Vedas dizem que quando você tiver dúvidas sobre dharma e adharma, kartavyam e akartavyam (o que deve e o que não deve ser feito), busque outra pessoa, de preferência com o conhecimento de Vedanta, que tenha valor pelo dharma e que não esteja envolvida com a situação para ajudar a analisá-la.


- Quais são os papéis atribuídos a você no Vidya Mandir? As pessoas solicitam aconselhamento? Podemos considerar suas responsabilidades como uma liderança, assim como o Rei Yudisthira, sob o comando de um reino?
- Krishna fala na Gita sobre o líder, que é o exemplo para as outras pessoas. Cada um de nós é um líder em um grupo pequeno ou grande. Sem dúvida, de alguma maneira, aqui no Vidya Mandir eu sou um líder, uma referência. Mas Yudisthira era líder em um reino bem maior. Cada um de nós tem uma função e responsabilidades com outras pessoas. Existe esse meu papel como líder, como professora deste centro de estudo que é mais do que uma sala de aula – com as gravações das aulas que enviamos via CDs já tivemos grupos de estudo em várias partes do País, de Livramento (RS) a Rondônia. Além disso, publicamos livros. E temos o grupo das pessoas. O João Mazza estuda comigo desde que comecei a dar aula, em 1979, já sabe o assunto e continua vindo para se distrair, ouvir de forma diferente. A gente se torna uma família, um satsanga. Eu recebo das aulas, mas nada das publicações, CDs ou DVDs – isso volta para a publicação de mais coisas. Durante muito tempo também realizamos as vindas do Swami Dayananda. A sala é nossa, doação de um aluno que viu o valor desse estudo. Sem dúvida, isso tudo precisa de um gerenciamento, mas claro que conto com a ajuda de pessoas preciosas. Quanto ao aconselhamento, é um dos muitos papéis de um professor na Índia. Eu não faço isso no sentido de uma pessoa telefonar e eu dizer o que fazer. Mas quando um aluno tem questões na vida, sento com ele e tento ajudar a entender e a solucionar os problemas. Faço até como um suporte ao estudo. Muitas vezes é preciso entender esse conhecimento à luz dos problemas diários.


- Muitos brasileiros viajam para estudar Vedanta nos ashrams com os swamis, mas hoje temos como acessar esse ensinamento aqui, graças ao trabalho do Vidya Mandir. Ainda é preciso ir à Índia?
- O estudo de Vedanta envolve as aulas em que a gente senta e escuta, uma reflexão, que se faz nas aulas e depois, e uma contemplação, que se faz nas aulas e depois só, em casa. Essa prática é suficiente para a aquisição do conhecimento e da liberação. Porém, para que isso funcione, é necessária uma mente com maturidade, discernimento, desapego, certas qualificações que conseguimos com um estilo de vida que colabore para isso, com meditação, valores, Yoga. Isso compreende toda uma vida. Quem nunca foi à Índia pode conseguir. Mas quando se vê essa cultura viva lá, com mais gente nessa mesma busca, a gente se inspira.


- E foi isso que a fez voltar à Índia?
- O que me fez voltar foram amigos e conhecer vários lugares de peregrinação que são inspiradores e de muita devoção.


- Você lembra quantas vezes?
- Não tantas. Voltei ao Brasil em 1978. Depois disso, só fui para lá em 1996 com um grupo de alunos, em 2001 para um congresso de religiões com o Swamiji, em 2007 e também em 2010.


- Como o ensinamento de Vedanta pode impactar a nossa vida cotidiana?
- O conhecimento de Vedanta fala sobre realidade. A realidade absoluta do eu e do relativo como relativo. Quando só conhecemos o relativo, achamos que o relativo é tudo, é absoluto: o dia a dia é a coisa mais real que conhecemos, então ficamos na expectativa de que dure para sempre e nunca nos preparamos para a morte. Quando a gente conhece o absoluto, existe uma mudança radical na vida, porque você encara o relativo como relativo e vê que o perecível vai perecer. Então, para que sofrer com isso? Temos de entender o absoluto para colocar o relativo na sua verdadeira dimensão com tranquilidade e objetividade. Isso melhora muito a vida.


- Você encara a morte como algo mais tranquilo?
- Naturalmente. A morte é a destruição de um estado. A gente não vai mais ver a pessoa, mas ela vai continuar de outra forma. Esse entendimento faz com que a gente relaxe. Para a pessoa que vai, ela continua indo, mas não deixa de ser triste para quem fica. Deveríamos estar preparados para isso, que é tão natural, mas não estamos.


- Swami Dayananda diz que devemos ter filhos para evoluir em nossa passagem na Terra. No entanto, cada vez mais pessoas deixam de tê-los. Gostaria de saber se escolher não ter filhos pode interferir no dharma.
- As sociedades mais antigas dependem da estruturação das famílias e de papéis claros, com casamento e filhos. Mas mesmo nas sociedades védicas já existe o modelo de vida em que a pessoa renuncia a isso para se dedicar ao autoconhecimento. Isso não é adharma, é uma possibilidade. Para a pessoa que se casa, o filho é uma consequência do relacionamento e de uma maturidade, você reavalia muita coisa, seus próprios valores e objetivos… Eu não diria que é errado não querer filhos, mas é uma pena que pessoas que tenham uma busca espiritual e uma prática de Yoga optem por não tê-los, porque seria uma oportunidade de dar conhecimento a crianças. Muitas vezes a pessoa opta por não ter filhos para se dedicar mais ao caminho de Yoga sem entender que ter filhos também é praticar Yoga.


- Na sua vida pessoal você conseguiu ver isso com clareza (Gloria tem dois filhos e uma filha)?
- Sem dúvida, sempre optei por tê los, não foi acaso. Porque vivendo na sociedade ocidental, devo estar encaixada o tanto quanto possível. Na Índia eu poderia ter vivido como renunciante, mas nunca quis. Tendo a vida aqui, sempre achei que era um fator muito importante para mim, um crescimento, e eles realmente fizeram parte da minha vida, do meu estudo e contribuíram para uma vida de Karma Yoga, nunca atrapalharam. É uma decisão pessoal, mas sempre digo que os yogis deveriam ter mais filhos. 


- Existe algo a ser feito quando se opta por não ter filhos?
- Não. Mas uma vez, durante uma palestra do Swami Dayananda no Brasil, uma pessoa perguntou “Como neutralizo meu sentimento de culpa por ter feito um aborto?”. Ele respondeu sem fazer julgamentos à pessoa: se há culpa, pode-se escolher uma criança sem condições e pagar sua escola, seu ensino completo, para atenuar esse sentimento.


- Qual a diferença entre espiritualidade e religião?
- Espiritualidade é mais ampla do que religião. E fala mais profundamente para o ser humano. As religiões basicamente estabelecem, por meio de ritos e práticas, uma relação dual do indivíduo com esse Deus, o Criador o que chamamos de Ishvara, o Todo. O hinduísmo é semelhante a outras religiões, mas os Vedas, que são a base dessa religião, falam mais de uma realidade que podemos chamar de espiritual, que é o entendimento da natureza essencial do indivíduo como igual ao Criador – a verdade última do indivíduo é a verdade última do Criador. O conhecimento fundamental é o entendimento não dual dessa realidade imutável e imortal: o indivíduo é o Todo. Para esse conhecimento não é necessária religião. No Vedanta conhecemos a religião no sentido de religar a esse Todo. A verdadeira espiritualidade é descobrir que sempre fomos um único com o Todo; o que separa é a ignorância.


- Que atitude temos de aplicar quando falsos gurus se encontram em nosso caminho?

- O papel de um mestre é muito importante porque sem ele não conseguimos fazer conexão com a tradição de conhecimento. Podemos pegar um livro e imaginar o que está querendo dizer, mas para entender precisamos de alguém que nos ensine. Ao mestre deveremos sempre confiança e gratidão porque nos fez conectar com essa tradição maravilhosa de ensinamento que nos abençoa. Mas também não dá para confiar de olhos fechados. Devemos buscar discernimento, ouvir outras pessoas e de nossas necessidades no momento. Às vezes a pessoa pode não ser um grande mestre, mas me conduz a algo mais – pode ser até saber o que não quero. Então o que podemos fazer é uma oração. Nessas horas nos resta rezar e não entregar tudo o que temos para uma pessoa que não conhecemos, e ir analisando aos poucos. Um ponto é importante: quando o professor começa a colocar o estudante muito dependente dele, tem alguma coisa errada. Porque esse conhecimento fala sobre libertação, então um professor que prende… Outra coisa: um professor que queira que o aluno preste muitas homenagens também tem algo errado.
 - Como identificar um bom professor de Vedanta?
- Ele tem de passar pela metodologia de ensino por um período de tempo, porque é preciso absorvê-la. Tem de ter o conhecimento e a capacidade de ensinar, que nem sempre estão juntos. A capacidade de ensinar é uma bênção divina. Para detectar o bom professor, observe se ele ensina com clareza e se não precisa de muitas reverências.


- Qual é a função da entrega, da aceitação em uma tradição que enfatiza o conhecimento?
- O conhecimento exige uma entrega. Para aprender qualquer coisa, o estudante tem de confiar que o professor é bom. A confiança é um fator muito importante, porque você vai aprender mais do que algo teórico, como química ou física, vai aprender aquilo que você é, um conhecimento muito sutil, que uma pessoa que já está vendo leva a outra a ver. Há uma profundidade muito grande nisso.


- Vejo uma banalização do importante Gayatri Mantra. Pode esclarecer esse assunto para os yogis?  
- Cada mantra existente pertence a um dos quatro Vedas (Rig, Yajur, Sama e Atharva). As famílias eram levadas a decorar um desses Vedas. No momento em que a criança era iniciada nos Vedas, recebia o mantra que existe nos quatro Vedas: Gayatri Mantra, do Sol. E havia todo um ritual para isso. Na tradição, esse mantra deve ser ensinado com cuidados específicos, não pode ser divulgado. Eu aprendi que quando uma pessoa é iniciada, pode receber um dos muitos mantras como Om Nama Shivaya, mas não o Gayatri, porque envolve várias práticas, como não beber e não comer carne. Esse mantra infelizmente foi divulgado inadequadamente até por indianos mesmo, na internet, repetido de qualquer maneira porque as pessoas não aguentam um segredo. Se você quiser ter um ganho de repetição de mantras, pode fazer qualquer outro mantra; este tem uma maneira especial de cantar. Mas não adianta criticar, é uma confusão do nosso tempo que permite muitas possibilidades de disseminar e captar informações.


- Na terceira idade a memória começa a falhar, a mente fica mais lenta. De alguma forma isso pode auxiliar o akhanda akara vrittri?
- Akhanda akara vrittri é um nome técnico para o pensamento no qual você se reconhece como o Todo e descobre a não dualidade. Nossos pensamentos são caracterizados por três fatores: o pensador, o pensado e o pensamento. E não tem a ver com perda de memória, porque esse pensamento pode aparecer enquanto você está estudando, pensando ou meditando: porque não é uma questão de lembrar, é uma questão de ser, e você já é, não precisa lembrar de ser.

- O que fazer quando após anos de prática e estudo nos pegamos cometendo os mesmos erros?
- A gente tem de rir, não tem outro jeito. “Meu Deus, quanto estudo e fiz essa besteira, não estou rindo porque fiz uma besteira, mas porque estou me dando conta de que fiz a besteira.” Quando reconheço que cometi um engano, se reajo com raiva é porque estou me identificando com o engano. Então tem que rir!


- Qual é a atitude de Yoga na ação?
- É por um lado ter a atenção para fazer aquilo que cabe a você nos vários relacionamentos e papéis que tem de cumprir. Isso em contraste com fazer somente aquilo que você quer fazer. Se o que quer fazer combina com o que deve, ótimo. Mas se as duas coisas entram em conflito, tente deixar o desejo de lado e cumprir seu papel. Esse é um aspecto de Karma Yoga, e não é fácil. O outro aspecto de Karma Yoga é lidar com as consequências das ações. Quando o resultado vem, receba como uma resposta adequada à ação que foi feita para você. No momento em que escolheu a ação, existiam várias possibilidades de respostas, essa foi a que veio. Então receba em vez de ficar reclamando, ou culpando, e tente na próxima vez ou imediatamente fazer uma ação melhor para ter o resultado que quer.


- Há premissas do Vedanta, como a frase “você já é a felicidade que busca”, repetidas em contextos que chegam a pessoas em diversos níveis da busca. Isso não pode perturbar em vez de ajudar?
- Bem, como você disse, há pessoas em vários níveis de clareza ou não clareza da própria busca. A uma pessoa que está sofrendo por causas relativas e não questionamentos, não devemos falar de Vedanta, a não ser que seja um estudante. Temos de tratar dos problemas relativos com enfoques relativos. Enfoque absoluto, aqui, é simplificar um ensinamento tão profundo. Vedanta não é frase feita, é metodologia de ensinamento. Uma frase não faz nada. Você dizer que ela é a felicidade que busca pode “matar”, irritar a pessoa. Essas frases não funcionam e o Vedanta não tem esse objetivo. Primeiro trate do relativo; quando a pessoa estiver capacitada, ela perguntará sobre o absoluto.


- A sua longa trança tem inspiração no estilo das indianas?
- Nasci em 1953, e na época as crianças andavam de tranças. Eu geralmente usava duas, e tive cabelo comprido até os 17 anos. Como uma boa adolescente, me rebelei, cortei bem curto e fiz permanente. Não foi o look de que gostei (risos)! Deixei crescer porque tenho muito cabelo, e curto ele fica armado. Como sinto muito calor, deixá-lo preso é a melhor opção e a mais fácil. Quando cheguei à Índia, vi que usavam assim também, e fui inspirada a ter esse penteado. E lá sempre diziam que o cabelo era bonito e fui deixando. Quando ficou branco, também combinou com a trança. Eu gosto e os indianos também, porque ele se mantém grosso. Acho que é de família, porque não trato com nada especial, só passo óleo de coco para assentar e tirar o ressecado.


- Qual é a passagem da Bhagavadgita que considera mais importante e qual é a mais especial?
- O início da Gita, a confusão e o desespero de Arjuna e a maneira como Krishna lida, enfatizando primeiro o autoconhecimento, realmente é uma coisa incrível, porque ele dá a solução a Arjuna colocando que tudo isso acontece devido a uma confusão sobre o objetivo último da vida, o entendimento de quem você é fundamentalmente. Quando Arjuna pede uma solução definitiva, “o que vai me libertar?”, Krishna primeiro fala claramente sobre o absoluto e depois lida com o relativo. Esse lidar de Krishna realmente é incrível, ele lida belamente com aquilo tudo, mas não fica só na estratosfera, fala sobre o dharma. Isso é maravilhoso. Sempre que começo a ler o capítulo 1 e o começo do capítulo 2, fico de cabelo em pé, porque é emocionante alguém trazendo aquela resposta naquele momento. Há vários momentos incríveis. No capítulo 2, quando Krishna diz que o absoluto não muda e seu corpo e sua mente são relativos e mudam, e questiona “se a mudança é inevitável, por que sofrer?”, é lindo também. A Gita toda é maravilhosa e completa, não existe nada igual.


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