Por Carlos Gomes
Entrudo
e carnaval – dos ancestrais ritos pagãos à observação do
período quaresmal
O
termo Carnaval provém do latim "carpem levare" que
significa "adeus carne" ou "retirar a carne" ou
ainda estar associado a curru navalis que consistia
num carro de rodas marítimo que saía para o mar e significava o
retorno à pesca com a chegada da Primavera. Trata-se com efeito de
um período de licenciosidade em que, por oposição à Quaresma se
come carne, constituindo por assim dizer uma época festiva que se
destina simultaneamente a ritualizar a despedida do ano velho e, por
conseguinte, o entrudus ou entrada da Primavera e no
período quaresmal que a antecede.
Com a
chegada do Inverno e a consequente morte dos vegetais e da própria
natureza, o homem recorre preferencialmente ao consumo da carne como
forma de assegurar meios de sobrevivência. Desde sempre, o porco
representou um elemento essencial na economia familiar nos meios
rurais uma vez que a sua carne pode ser conservada na salgadeira
durante muito tempo, o que permite suprir a escassez de outro género
de alimentos como os vegetais que geralmente desaparecem durante o
Inverno. E é durante este período que ocorrem um pouco por todo o
lado as tradicionais matanças do porco num ritual com um certo
carácter festivo. E, continua a ser o porco o animal que entra
preferencialmente na simbologia do Carnaval, não raras as vezes
associando-se o respectivo focinho às máscaras carnavalescas.
Desde
os tempos mais remotos, os povos sempre ritualizam a entrada do ano
ou seja, a chegada da Primavera e o renascimento da natureza,
acreditando que dessa forma esta lhes seria favorável. Com efeito,
para o homem primitivo a celebração do ritual correspondia a uma
forma de participação na acção criadora dos deuses, assegurando-se
desse modo que o ciclo da natureza não seria interrompido, o que
confere ao rito um carácter de magia imprescindível à reprodução
do gesto primordial ou seja, o da própria criação do mundo e das
coisas. O rito é, por assim dizer a celebração do mito da criação,
assumindo sempre a sacralidade imanente ao ato da criação divina.
Assim se verifica com as práticas relacionadas com o culto dos
mortos que ocorre invariavelmente com a chegada do Inverno e também
com as celebrações do nascimento do sol que se verifica no
solstício de Dezembro, altura em que os dias cessam de diminuir e
voltam a crescer, ocasião essa que dava lugar às saturnais entre os
romanos e com a influência do cristianismo veio a originar a
celebração do Natal de Jesus Cristo, embora não existam quaisquer
documentos que indiquem ter sido essa a sua data de nascimento. Ora,
é directamente das saturnais romanas que provêm directamente os
festejos de Carnaval os quais eram consagrados à divindade egípcia
Ísis, embora estes a tenham adquirido dos gregos que as realizavam
em honra de Dionísios, um deus do vinho e dos prazeres da carne. Em
Veneza onde as máscaras brancas ainda pontificam, o Carnaval
terminava com o enterro de Baco, curiosamente, a divindade que na
mitologia latina corresponde à de Dionísios na Grécia antiga.
O uso
de máscaras que ocorre durante os festejos de Carnaval tem na sua
origem um carácter religioso relacionado ainda com o culto dos
mortos, pretendendo-se com a sua antropomorfização invocar os seus
espíritos e a sua intercessão no ciclo ininterrupto de vida e morte
da própria natureza e dos vegetais, razão pela qual muitos
mascarados se vestem de branco, afivelam máscaras que representam
esqueletos ou simplesmente a própria morte. Acendiam-se fogueiras e
queimavam-se bonecos, costume aliás que de igual modo deve estar na
origem da serração da velha, a qual também nos aparece sob a forma
de pulhas e ainda na versão mais cristianizada da queima do Judas. É
neste contexto ainda que se inserem as tradicionais máscaras
transmontanas e as festas dos rapazes que ali têm lugar.
Com o
decorrer dos tempos, estas festividades também adquiriram um
carácter de crítica social, visando com ele corrigir os desvios
verificados no ano velho de modo ao renascimento da natureza também
se operar no indivíduo e no seio da própria sociedade, o que
explica as pulhas e os "testamentos" que são lidos na
serração da velha e na queima do judas, bem assim como as máscaras
que procuram representar alguém sem ser a própria morte. Aliás, na
tragédia grega a máscara que era usada significava precisamente a
"pessoa" que se representava.
(...)
Perdida
que foi a sacralidade primitiva, os festejos chegam até nós pela
tradição, despojados de espiritualidade, apenas envoltos em
fantasia e divertimento, mas contendo ainda em si os elementos que o
determinaram. Com efeito, o Carnaval ou "festa da carne"
antecede a Quaresma, para os muçulmanos o Ramadão, período de
abstinência que se destina à purificação do corpo e da alma e que
visa preparar-nos para o renascimento da vida e da natureza, o ano
que começa com a chegada da Primavera.
E é
então que tem lugar a Serração da Velha e o rapazio percorre os
caminhos das aldeias com zambumbas e zaquelitraques, tréculas,
sarroncas e tudo quanto produza barulho e que se destina a afugentar
os demónios do Inverno. Práticas, aliás, que também ocorrem
consoante os casos no Carnaval e na passagem de ano, na noite de
Natal ou durante os Reis. Para trás ficou a longa noite do Inverno
repleta de visões e fantasmas aterrorizantes com abóboras
iluminadas nas encruzilhadas dos caminhos e reuniões de bruxas sob
as pontes e nos cabeços dos montes, os peditórios de "pão por
Deus" e as visitas aos cemitérios, a queima do madeiro e o
cantar das almas.
É
então chegada a Primavera e com ela as festas equinociais. É tempo
de renascimento da vida e da própria natureza, celebrado entre os
cristãos como a ressurreição de Cristo e representada através do
ovo da Páscoa, símbolo da fertilidade e do nascimento da vida nova.
Entre muitos povos europeus mantém-se o costume de enterrar ovos nos
campos que servem de divertimento ao rapazio que se entretém à
procura enquanto a nossa gastronomia conserva a tradição do folar.
Ao toque das sinetas e ribombar dos foguetes, os mordomos aperaltados
nas suas opas vermelhas levam a cruz florida a beijar de casa em casa
enquanto os caminhos se enchem de alecrim, funcho e rosmaninho - é o
compasso pascal, a forma como a festa é vivida nas aldeias de
Entre-o-Douro-e-Minho e também em Trás-os-Montes.
Em
breve virá o Maio e, com ele, as maias feitas de giestas floridas, a
celebração do Corpus Christi, das festas do Espírito Santo em
Tomar e nos Açores, as fogaceiras em terras da Feira e as festas e
romarias que animam as pequenas comunidades rurais, as peregrinações
aos pequenos santuários e ermidas que salpicam montes e vales e que
servem de pretexto para mais uma festa. As gentes do mar adornam os
seus barcos e vão em colorida procissão dar graças pelo pão que o
mar lhes dá e invocar a protecção que lhes vale na aflição.
A seu
tempo chegarão as colheitas e as malhadas, as vindimas e as adiafas,
o S. Miguel e as desfolhadas que nalgumas regiões também se dizem
descamisadas. E, de novo, reiniciar-se-á o ciclo da vida e da morte
que assim permanece desde a criação do mundo, como um carrossel num
movimento incessante.
Na
religião primitiva, o Homem unia a morte à vida como uma constante
de perpétuo renascimento. Tal como na natureza ao Inverno sucede a
Primavera e com ela o renascimento da vida e dos vegetais, a vida
renasce da morte da mesma forma que esta resulta da própria vida.
Esta forma de pensamento reside, aliás, encontrar na filosofia
platónica e em culturas mais recentes, ainda que sob as formas mais
diversas. A tradição trouxe até nós tais práticas que passaram a
fazer parte do nosso folclore.
Pese
embora as transformações culturais e as modificações que
entretanto se operaram na mentalidade dos povos, as mudanças sociais
e de modos de vida cada vez mais divorciada da própria natureza,
cumpre-nos manter tais costumes como forma de preservar a nossa
identidade e, o que nos parece essencial, a nossa própria dimensão
humana. Graças à tradição conseguiremos transmitir aos vindouros
o conhecimento humano que os nossos ancestrais nos legaram!
Fonte