14 junho 2013

Fertilidade: sua vida é sua herança

Por: Fabiana Rodrigues Barbosa






Escrevo este texto mergulhada no aroma do arroz-doce a cozer na panela ao lado. O arroz integral ainda em água fervente com açúcar e canela. Água em precisa quantidade para que se coza bem macio até secar. Posso continuar escrevendo, pois em breve o som da água borbulhando deve tornar-se um pouco mais seco e estalado, me avisando que é hora de desligar o fogo. Neste momento levanto-me, junto o leite quente e os demais ingredientes, que cozinham até o ponto cremoso. Usei uma receita, mas mesmo sendo minha primeira vez não segui à risca. Criei um pouco, intuindo alguns ajustes para meu próprio paladar e benefício. Volto, sento pra continuar o texto. E me pergunto: estarei eu me transformando naquele abominável arquétipo multitarefas ou simplesmente orquestrando e nutrindo o fértil uso de múltiplas habilidades simultâneas? É sutil a diferença entre as duas atitudes: a primeira invariavelmente causa sufocamento e angústia, já que algo importante do qual fica impossível se dar conta estará provavelmente se perdendo no meio de tanto barulho. A segunda traz o bem-estar das realizações ativas, fluidas e despertas.

A TOTALIDADE É FÉRTIL
O aparentemente simples cozer do arroz-doce torna-se complexo quando percebido com mais atenção. Múltiplas habilidades são ativadas para compor um todo único e harmônico. Memória, intuição, visão, tato, audição, paladar, entre outras que poderíamos citar ao infinito. É claro que o resultado do trabalho pode ter ótimo sabor para alguns, e nem tão agradável a outros, afinalsabor vem de saber, que em cada ser constitui-se de um jeito específico. De qualquer modo, a partir de uma experiência prévia, chega-se a uma vívida e nova quando lança-se mão de uma equilibrada medida entre pulsão criativa e prudência, até que algo potente consolida sua existência no mundo e vai contagiando positivamente com mais vida tudo ao redor.

À ideia de totalidade é dado o nome Brahman, “palavra sânscrita formada a partir da raiz brh: crescer, expandir. Designa a força vital do universo que habita todas as coisas [...]”, o poder inerente nas palavras e no ritmo das preces, o poder sagrado que conferia eficácia aos encantamentos. De acordo com Heinrich Zimmer, ‘Brahman, este encantamento ou expressão mágica, é a forma cristalizada e congelada da mais alta energia divina [...], que quando ainda não se precipitou em seu estado líquido ou etéreo, constitui o poderoso impulso que emerge do inconsciente do ser humano.’[1] No hinduísmo posterior, equivale a Shakti: energia, força, poder.”[2]
Ou seja, a força vital – Shakti – , está implícita em Brahman, mas sem discernimento não é fértil ainda. Discernimento e força vital devem caminhar juntos para a totalidade fértil.

FEMININO E MASCULINO
Porém, vivemos há alguns séculos num mundo em que “feminino e masculino são uma polaridade desequilibrada. Direitos iguais para os homens nunca foram inspiração para uma marcha de protesto ou greve de fome. Em nenhum país do mundo, os homens são considerados legalmente incapazes, como ocorreu com mulheres de várias nações europeias até o século XX e ainda ocorre em vários países muçulmanos, do Marrocos ao Afeganistão. Nenhum país deu o direito de voto primeiro às mulheres para só depois concedê-lo aos homens. Ninguém jamais pensou que os homens fossem o segundo sexo.”[3]

“Os princípios feminino e masculino, como aspectos duais de uma matriz maior, são qualidades vibratórias da energia que é neutra e que permeia todo o universo. Ambos necessários para descrever adequadamente a realidade que conhecemos, são tendências opostas e complementares, presentes em todos os seres vivos. Todo movimento, toda expressão, todo comportamento é constituído de uma mescla de ambas as polaridades, ainda que em proporções diferentes.”[4]

Para identificar estas proporções no mundo, sobre um movimento expressivo por exemplo, “costuma-se denominar masculino aquele que tem uma intenção prévia e se mobiliza para alcançar o objetivo. Se lança para algo que está fora dele. Enquanto o feminino emerge de uma necessidade interna, tendo por objetivo responder a essa finalidade. É emergente e vinculado à fonte[...]. Em qualquer situação existe um elemento receptivo e outro ativo. Qualquer atitude se origina de um pensamento e de um sentimento.”[5] Por exemplo, podemos ensaiar que, quando decido preparar um alimento, a ação emerge de uma necessidade interna: a fome, a autopreservação (princípio feminino emergente vinculado à fonte). Mas ao escolher a panela de ferro porque cozinha mais rápido e havia pouco tempo disponível para a tarefa, estava mobilizando meu intelecto para alcançar o objetivo estabelecido: cozinhar algo em pouco tempo (mobilização masculina objetiva). Enquanto isso, durante o processo lanço mão de improvisações que fogem de ditames e receitas externas para servirem exclusivamente a meu paladar, seguindo apenas um instinto ou palpite: decisão de quais ingredientes usar ou como temperar (escolhas que emergem de um impulso/necessidade − princípio feminino emergente vinculado à fonte). Temos assim, na prática, feminino e masculino totalmente mesclados.

No tantra[6], Shiva e Shakti são, respectivamente, os princípios de consciência e poder; transcendência estática e movimento contínuo; inércia e paixão. “O poder, aspecto ativo e imanente da divindade é chamado de Shakti. Todo e qualquer deus necessita de sua Shakti ou será incapaz de agir.”[7] Shakti seria o princípio produtivo simbolicamente feminino, e Shiva a consciência sem ação.

Portanto, feminino e masculino são uma dicotomia ilusória [8], já que o feminino seria a alma e o masculino a consciência, compondo a totalidade psíquica, e sendo assim inseparáveis em um único todo. A ilusão desta dicotomia pode ter surgido na humanidade com o pensamento mecanicista, que parte do ponto de vista da separatividade de partes que compõem o todo. “Quando partimos da totalidade, contudo, a dualidade é apenas seu desdobramento. Assim, para nos conectarmos com o absoluto sem polaridade, com ‘fecunda neutralidade’[9], [...] não precisamos nos tornar andróginos, mas sim participar do eterno jogo lúdico destas polaridades, jogo que possibilita ao mundo manifesto.”[10]

O par divino Shakti-Shiva, pode ser abstratamente expresso como yoni(vulva)-lingam(pênis), símbolo supremo do princípio vital. Vajra-padma significa ‘a joia no lótus’. E segundo B. Walker, “Vajra pode significar tanto joia quanto diamante, este último um antigo símbolo para clitóris. ‘O vajra é um símbolo arcaico de poder, encontrado em coroas de deidades da vegetação e em selos da civilização do vale do rio Indo.’[11] Vajrasana seria o ‘assento de diamante’, estado mítico de união psicossexual com a Deusa.”[12]Todo o universo provém de uma união de uma yoni com um lingam.

Até mesmo no Hatha Yoga, sistema de práticas desenvolvido para o despertar da energia psíquica potencial humana (Kundalini) por meio do esforço físico, temos essa relação. Hatha, em sânscrito, literalmente significa esforço extremo. Mas há algo lindo por trás disso: Ha = Sol e Tha = Lua, o que significa que este esforço extremo depende da integração das duas forças solar (masculina) e lunar (feminina), para o despertar da potencialidade humana. Estamos, portanto, falando de fertilidade, em toda a sua extensiva expressão, como integração de forças.

A FERTILIDADE FEMININA NA HISTÓRIA
Nas sociedades tribais os rituais tântricos – cultos e práticas mágicas populares com ensinamentos esotéricos e iniciáticos –, eram “meios de invocar os aspectos benéficos dos elementos e das divindades, trazendo segurança para as pessoas. Quando do aniquilamento das formas tribais de organização e imposição do poder central sacerdotal, o sentimento de estar à mercê de um deus ou rei todo-poderoso, ou de seus representantes, fez com que as pessoas do povo se apegassem ainda mais ao culto à Deusa-mãe (a figura da mãe natural, entendida como potência de vida e, portanto, desta protetora), associado ao fato de lhes ter sido interditado o acesso aos rituais dos dominadores [...]. Para escapar à aniquilação total sob a influência dos sistemas de orientação masculina, o culto à Deusa e seus símbolos submergiram, levando consigo cerimônias sagradas que até então eram partilhadas por todos, passando a ser realizadas secretamente, apenas por iniciados [...]. Na Índia e Bangladesh existem ainda hoje escolas secretas, onde a Deusa e sua yoni (vulva) são cultuadas, não apenas por seus poderes de fertilidade, mas pelas energias associadas à menstruação e a sexualidade feminina [...]. Com o tempo, as deusas silenciadas pelo domínio patriarcal gradualmente foram ressurgindo até que os elementos míticos de diversas tradições femininas se fundiram na imagem da grande deusa Maha-Devi (contida no texto Devi-Mahatmya – ‘O texto da Maravilhosa Essência da Deusa’ –, de 500-600 d.C.”[13]

Shakti primeva é força e fonte de onde tudo nasceu e teve origem. Este conceito está contido em muitos símbolos femininos como as águas fluidas, elemento preservador da vida: “água, seiva, leite e sangue são diferentes formas do mesmo elixir de vida.”[14] A flor-de-lótus, yoni e mãe do universo, útero da natureza onde todos os seus elementos estão reunidos: a terra (lodo) como sua sustentação, a água em que está mergulhada que a mantém viva, as pétalas seriam o ar e sua fertilidade que ocorre pelo calor do sol. “No broto, flor e semente temos a trindade virgem-mãe-anciã.”[15]

“Desde o paleolítico, a vulva é representada como um triângulo (em figuras femininas desenterradas em sítios arqueológicos), simbolizando a fonte de águas da vida, ou como semente e broto prenunciando o desabrochar da planta, ou então uma vulva inchada prenunciando o parto.”[16] “Nas ilhas britânicas, ela aparece nos pórticos acima das entradas das igrejas e monastérios como Sheela-na-gig, uma figura que abre suas pernas e expõe sua vagina como símbolo de passagem para a vida.”[17]

A MULHER, SEU CORPO E SEU CICLO FÉRTIL
Portanto, se segundo o tantra, Shakti é poder, movimento contínuo, paixão e ação, e se a mulher tem chances de bem compreender e saber do princípio dos ciclos naturais, nos quais seu próprio ciclo menstrual se inclui, ela estaria apta a navegar nestes ciclos por toda a eternidade, para sempre vinculada à natureza inegável?

A cada mudança de estação, período ou fase, a mulher é lançada a um novo estado de emergência, em que as variáveis já são diferentes do anterior. Nunca viveremos um período menstrual ou fértil igual a outro, pois estamos em constante movimento. A cada manhã, ao acordar nossa pele está diferente, e assim também nosso útero e glândulas. Mas se nos observarmos, e assim como ao cozer o arroz-doce, intuímos, ou melhor, escutamos a voz que diz “um pouco mais de açúcar, um pouco mais de afeto”, “mais pimenta agora”, “não, não, chega, assim está bem”[...]. Temos grandes chances de acertar, pois esta voz é nada mais do que nós mesmas. É potência pura. Representa nossos devires, pulsão de vida, e carrega consigo todas as chances de transformar inércia em vida, gestando um novo ser: nós mesmas em uma refinada versão.

PARA UM NOVO FILHO
Uma das mais lindas mensagens que Geeta Iyengar nos deixa em seu Iyengar Yoga for Motherhood (que considero indispensável leitura para quem pretende gerar um filho, pois ali encontram-se dicas para o casal desde antes mesmo de haver a concepção até o pós-parto), além de Yogasanas, Pranayamas e dicas práticas, é que quem pretende gerar um filho deve se lembrar que absolutamente tudo o que você pensar, sentir e fizer com seu corpo, sua mente e seu espírito vai ser herdado por seu filho desde o ventre. Você está o tempo todo criando herança para a humanidade por meio de sua própria vida. E pensei: os Deuses estavam mesmo pensando na evolução de nossa espécie quando inventaram o Yoga. Sua vida será sua herança.

UM YOGA ASANA
Abro o livro Light on Yoga de BKS Iyengar procurando reler o que ele fala sobre fertilidade. Me deparo logo com um de meus Yogasanas prediletos: Badhakonasana[18] (ilustração da abertura deste artigo), que está também indicado no Hatha Yoga Pradipika (guia clássico sistematizado por Svatmarama Yogendra em meados do século XIV de nossa era, para a prática avançada do Hatha Yoga) como uma das quatro posturas mais importantes, entre as oitenta e quatro deixadas como legado pelo próprio Senhor Shiva, que teria criado o Yoga e o ensinado a sua esposa Parvati, para que juntos compartilhassem a jornada de suas existências tendo este sistema de práticas como instrumento.

Segundo o Hatha Yoga Pradipika, Badhakonasana cura todas as doenças e elimina o cansaço. Segundo BKS Iyengar, este Asana “mantém os ovários, os rins e a próstata tonificados, nutridos e saudáveis; trata distúrbios urinários e ovarianos; reduz dor ciática; previne hérnia; alivia peso e dor nos testículos; corrige menstruação irregular e muito pesada; alivia dor menstrual; e até ajuda a desobstruir as trompas de falópio obstruídas! Melhora o fluxo sanguíneo para o abdômen, a pelve e toda a articulação do quadril. Está recomendado no livro do Dr. Grantly Dick Reed chamado Parto sem medo.”[19] Segundo Geeta Iyengar, o Asana “está no topo da lista para gestantes! Elas sentirão liberdade para o sistema respiratório, muito menos dor durante o trabalho de parto e estarão livres de varizes se praticarem a postura todos os dias por alguns minutos. Ele tonifica os músculos do assoalho pélvico, alivia dor nas costas. Reduz a tensão na pele e nos músculos abdominais, o que causa estiramento e comichão. Corrige a pressão do útero nas veias largas da pelve, que causa obstrução da circulação e resulta em retenção hídrica. As pernas se abrem como pétalas de uma flor-de-lótus, dando liberdade aos músculos do assoalho pélvico. Alivia compressão na vagina, ânus e parte baixa da coluna vertebral. Ajuda a eliminar desconforto, ardência, irritação, coceira ou corrimento vaginal. Badhakonasana pode ser praticado a qualquer momento do dia, inclusive após uma refeição, pois auxilia a digestão.”[20] Cuidado: não o pratique se você tiver prolapso de útero.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] ZIMMER, H. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 1986. P. 63.
[2] VON KOSS, M. A totalidade e seu desdobramento. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 19-36.
[3] Sonntag, S. Mulheres. In Folha de São Paulo. Caderno 2. P. D9. 8 de janeiro de 2000. Tradução e edição de texto de Ruth Helena Bellinghini.
[4] VON KOSS, M. Feminino e masculino: uma dicotomia ilusória. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 209.
[5] VON KOSS, M. Feminino e masculino: uma dicotomia ilusória. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 210.
[6] “O Hatha Yoga tem suas raízes na Índia antiga, mas ganhou muita força no período medieval (séculos IX a XVI)… O período em que ele surgiu coincide com um momento muito especial em que os adeptos do Tantra apresentaram a uma Índia pasmada e acomodada no ritualismo bramânico uma visão revolucionária e dinâmica do universo e do Homem. Para os tântricos o corpo não é mais causa de pecado e perdição, mas veículo para a transcendência e a realização da natureza divinal do Homem”. KUPFER, P.  Introdução. In YOGENDRA, Svatmarama. Hatha Yoga Pradipika. Florianópolis: Dharma, 2002. P. 7-12.
[7] VON KOSS, M. Tantra e a polaridade sexual divina. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 44.
[8] VON KOSS, M. Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000.
[9] ZIMMER, H. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 1986.
[10] VON KOSS, M. Tantra e a polaridade sexual divina. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 45.
[11] RAWSON, P. The art of Tantra. New York: Thames and Hudson, 1992. P. 9-10.
[12] WALKER, B. Vajra. In Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets. San Francisco: Harper, 1983. P.1037.
[13] VON KOSS, M.. Tantra e a polaridade sexual divina. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 37-60.
[14] WALKER, B. Menstrual blood. In Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets. San Francisco: Harper, 1983. P. 637.
[15] VON KOSS, M. Tantra e a polaridade sexual divina. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 40.
[16] GIMBUTAS, M. The Language of the Godess. San Francisco: Harper, 1991. P. 99.
[17] VON KOSS, M. Tantra e a polaridade sexual divina. In Feminino + Masculino – uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000. P. 41.
[18] IYENGAR, BKS. Yogasana, Bandha and Kriya. In Light on Yoga. New York: Schocken Books, 1979. P. 128-129.
[19] IYENGAR, BKS. Asanas for you: sitting asanas. In Yoga, the path to holistic health. London: Dorling Kindersley, 2001. P. 108-109.

[20] IYENGAR, G.S.; KELLER, R.; KHATTAB, K. Detailed descriptions of asanas for all studentes: Badhakonasana. In Iyengar Yoga for Motherhood – Safe practice for expectante and new mothers. New York: Sterling Publishing Co., 2010. P. 67-69.



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