Tradição e simbolismo
O
Carnaval dos nossos dias, urbano ou rural, remontará, na sua origem,
às antigas festas da Natureza, de fundo agrário. As Saturnais
romanas e as Lupercais celebradas em honra de Pan, o deus dos
rebanhos. A expressão popular “é Carnaval, ninguém leva a mal”
encontra o seu fundamenta nos rituais licenciosos próprios destas
festividades, uma licenciosidade socialmente consentida que, a par de
outros rituais de carácter expurgatório, constitui ainda hoje a sua
principal característica.
Podemos
afirmar que na origem do Carnaval radica uma série de elementos e
ritos religiosos das antigas sociedades grega e romana. Por outro
lado, já na época medieval, a Igreja assume estas celebrações
conferindo-lhes um novo significado: a preparação para o longo
período de jejum que são os quarenta dias da Quaresma. Daqui, o uso
indistinto dos termos carnaval , do latim carne,
vale , isto é, adeus, carne e entrudo, introitu ,
entrada. Que é como quem diz, adeus, carne que vamos dar
entrada na Quaresma.
O
carácter licencioso radicará nas antigas festas Lupercais,
celebradas na antiga Roma em meados de Fevereiro e que se expandiram
um pouco por todo o Império, em honra do deus Pan, protector dos
pastores e dos rebanhos. Mais do que em qualquer outra festa, eram
permitidos aos foliões todos os excessos no uso e abuso da comida e
da bebida e na fuga às normas moralmente instituídas. As anomias
eram praticadas e assumidas pelos próprios sacerdotes, constituindo
verdadeiros rituais de simulação do acto sexual e de apelo à
fecundidade. O momento do ciclo agrário era propício à celebração
destes rituais: a aproximação da entrada da Primavera considerada
como o momento do rejuvenescimento da Natureza.
Os
rituais expurgatórios destinavam-se à purificação e expurgação
dos males sociais, moléstias, maus presságios e augúrios nas
pessoas e nas comunidades. São exemplos destes rituais a destruição
pelo fogo de figuras alusivas ao passado (tudo o que é velho), o
julgamento e queima do Entrudo, do Velho e de outras figuras míticas,
em cerimónia pública, o castigo que os mascarados infligem às
mulheres que se atrevem, nesse dia, a sair à rua, as frenéticas
“chocalhadas” e correrias, a crítica social expressa na
encenação dos “casamentos” burlescos e ridicularizantes dos
jovens “casadoiros”… rituais expurgatórios deste momento de
passagem que é o fim do Inverno e a entrada na Primavera que vigoram
aqui e ali, um pouco por todo o lado.
Apesar da “cristianização” que todas estas práticas sofreram
ao longo de cerca de dois mil anos, podemos entender ser ainda hoje
esse mesmo o sentido, ainda que inconscientemente, a dar aos rituais
carnavalescos. Desenrolados no Domingo Gordo, Carnaval e
Quarta-feira de Cinzas.
A
função das máscaras
O
mascarado assume hoje funções meramente profanas, bem distintas das
que estão na origem do seu aparecimento. Com excepção da máscara
grega usada nas representações teatrais para conferir uma certa
personalidade às diferentes personagens, bem como a do género
dramático commedia dell'arte , a máscara na Antiguidade
surge como adereço imprescindível ao exercício de actos mágicos e
socialmente aceite como tal: rituais sagrados de ligação entre os
vivos e os mortos, entre o homem e adivindade, rituais profilácticos
e propiciatórios e rituais de iniciação.
É
neste contexto que aparece a máscara de Carnaval. Qualquer momento
de passagem é crítico para a comunidade que o vive. O Carnaval
situa-se no momento de passagem do Inverno para a Primavera ou de um
ano a outro (segundo a antigo calendário gregoriano, o ano começava
em Março). Logo, o Carnaval corresponde a um momento crítico para
as sociedades agrárias. A presença do mascarado justifica-se assim
e a sua acção relaciona-se com a preparação para essa passagem,
através do desempenho das suas funções sagradas que hoje se
revestem de características meramente profanas. Por isso, o
mascarado activo transforma-se num ser superior. Gozando de uma força
e liberdade sem paralelo. Coloca-se acima de toda a norma e, como se
de um ente sagrado se tratasse, mas possuído pelo diabo, se liberta
de todos os entraves e dá largas às suas faculdades de destruir e
castigar, de troçar e criticar, de dançar e gritar a seu
bel-prazer.
Dr. A.
Pinelo Tiza
Fonte: